Em nome do interesse público

No dia em que a origem dos bens de cada um estiver sujeita à obrigatoriedade de comprovação da sua origem, no caso de suspeita, é provável que haja menos circulação clandestina de dinheiro e de benesses

No dia a seguir a ter legitimamente reafirmado a impossibilidade do PS entrar em acordo com o Governo sobre opções estratégicas relativas ao modelo de desenvolvimento e às orientações orçamentais e governamentais a seguir terminado o Memorando de Entendimento, o líder do PS, António José Seguro, lançou no Parlamento, na quarta-feira, um desafio ao Governo e aos partidos da maioria, PSD e CDS, para rever o regime de prescrições de processos judiciais.

O primeiro-ministro teve o bom senso de se mostrar disponível para tal acordo e para apoiar as decisões que vierem a ser decididas parlamentarmente, evitando assim poder ser acusado de estar a desrespeitar o princípio da separação de poderes. Mas não deixou de se mostrar aberto a contribuir para sanar a displicência legal que permitiu a prescrição do prazo de aplicação da coima de um milhão de euros ao banqueiro Jardim Gonçalves, como pena pelo seu comportamento ilícito na gestão do BCP.

Nesta abordagem do assunto, não interessa referir em pormenor o que está em causa na condenação de Jardim Gonçalves por ter seguido comportamentos ilícitos comprovados pelo Banco de Portugal e, por isso, castigados com multa. Nem importa especular sobre os motivos pelos quais o juiz que julgou o recurso interposto por Jardim Gonçalves foi adiando o processo, empurrando a decisão para um momento em que a prescrição se consumou.

Interessa sim que um banqueiro, líder da administração de um dos principais bancos portugueses nos últimos vinte anos, foi condenado, em 2010, pelo Banco de Portugal, no uso das competências que lhe assistem neste domínio, ao pagamento de uma multa. Esta multa avultada tinha como função punir nove infracções com dolo. Além desta pena, Jardim Gonçalves ficava proibido de volta a ocupar cargos em instituições bancárias durante nove anos. Só que, graças as janelas e os alçapões da legislação, Jardim Gonçalves saiu impune.

As proporções atingidas pelo escândalo público em torno destra prescrição, vem tornar premente a necessidade de uma avaliação do que se passou. Não para se possa agir sobre este caso. Num Estado de Direito a justiça e a aplicação da legislação não é retroactiva. E esta prescrição não permite que Jardim Gonçalves volte a ser condenado sobre o mesmo assunto. Mas este caso pode servir como o alerta decisivo para que acabem os alçapões e as janelas pelas quais fogem aqueles que são acusados de crimes ou de ilícitos.

Uma das medidas legislativas que poderia vir a criar algum respeito pela decência comportamento de algumas figuras da elite política e económica, é a lei que tinha como objectivo a criminalização do enriquecimento ilícito. No dia em que a origem dos bens de cada um estiver sujeita à obrigatoriedade de comprovação da sua origem, no caso de suspeita, é provável que haja mais moralidade pública e menos circulação clandestina de dinheiro e de benesses ilicitas.

Aguarda-se que os partidos parlamentares tenha o bom senso de retomar e aprovar propostas de regulação e de moralização do no mundo dos negócios bancários ou outros, como a lei do enriquecimento ilícito que acabou por ser chumbada pelo Tribunal Constitucional.

É certo que muitas vezes a jurisprudência do Tribunal Constitucional é defensiva e até conservadora. Mas neste caso nem se percebe por que foi o Tribunal sensível à ideia de que a lei do enriquecimento ilícito abriria a porta a um Estado demasiado regulador e intrusivo, predisposto a espiolhar as contas e a vida privada e até a vida íntima das pessoas que estejam a ser interrogadas e investigadas.

Em democracia todos temos direito à privacidade. E a Constituição portuguesa, como qualquer Constituição de um Estado democrático, salvaguarda o direito à reserva de intimidade e ao bom-nome. Mas se, em democracia, todos os direitos são sagrados, a verdade é que eles não não podem pôr em causa a transparência que deve presidir à vida pública. Nesse sentido, é urgente que, em caso de suspeita sobre o património de qualquer individuo a sua origem possa ser investigada.

Numa democracia liberal, não se percebe que assim não seja. Já que é da essência do liberalismo que o individuo tem direito à propriedade. E se o individuo tem direito à propriedade, toda a propriedade tem um proprietário. Ora, o que é minha propriedade hoje, seja bens imóveis ou móveis, foi antes propriedade de outro. E é obrigatório, em nome da transparência, do interesse público e do combate à corrupção, que se possa rastrear qual a origem e o percurso dos bens que cada um possui, quando sobre essa pessoa recaem indícios de comportamentos ilícitos.

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