Comer o bolo e ficar com ele

Irá Portas sobreviver a este exercício de acrobacia política e ideológica em que tem vivido?

Paulo Portas tem gerido a sua vida política, há mais de dois anos, procurando sobreviver a uma contradição insanável.

Por um lado, é vice-primeiro-ministro, depois de ter sido ministro de Estado, de um governo que tem como programa político e missão cumprir o memorando de entendimento que foi assinado pelo Estado português com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional e que é um guião para uma reestruturação da organização do Estado de inspiração neoliberal. Por outro, é líder do CDS, partido que obedece ao ideário político da democracia-cristã. E tem-no feito, até agora, com sucesso, podendo mesmo dizer-se que conseguiu impor a sua ascensão a vice-primeiro-ministro, influenciou o executivo de forma a adiar a reforma do Estado e fortaleceu a sua posição como o líder da direita.

Quando apresentou o documento oficialmente da sua autoria, que o Governo diz conter o guião para a reforma do Estado, o ar vitorioso de Portas não era apenas teatro. Portas conseguia, naquele momento, manter-se acima da linha da água e não se afogar na tentativa de conciliar o inconciliável. Num texto repleto de contradições, que tanto defende o fim da presença do Estado na sociedade como a manutenção do Estado social, Portas conseguia que ficasse adiado o propósito com que o primeiro-ministro, Passos Coelho, se comprometeu de satisfazer as exigências reformistas da Comissão Europeia.

Num documento que prima por apontar soluções vagas ou por nem apontar soluções para diversos sectores da sociedade e do Estado, mas ciente da dependência que a sociedade portuguesa tem do Estado, Portas chega ao ponto de, em relação à Segurança Social, não ir mais longe do que foi, por exemplo, Marques Mendes, quando líder do PSD. Mas Portas fê-lo acrescentando a importante salvaguarda de que qualquer mexida na Segurança Social só poderá ser feita após serem atingidos 2% do crescimento da economia.

Senhor de fome de poder e líder de um partido em que os seus pares não querem abdicar de estarem sentados à mesa do Orçamento e de exercerem o poder político, Portas chegava assim ao fim de um processo em que foi conseguindo jogar com as crises e os epifenómenos políticos para influenciar as soluções governativas sem nunca perder a face como líder do CDS. Portas conseguiu ser governo e oposição – ou seja, participar de um governo que atacava o Estado-providência, mas usar a sua presença no Conselho de Ministros para jogar o seu peso na defesa daquilo que é o ideário democrata-cristão, que serviu a Konrad Adenauer para participar na estruturação do modelo social europeu, na Alemanha.

É assim que logo em 2012, quando Passos Coelho anuncia a subida da TSU para os trabalhadores (7 de Setembro) e depois da manifestação de 15 de Setembro, Portas aparece no dia seguinte, através das televisões em directo, a desafiar Passos e a assumir a sua discordância em relação àquela medida. Avança até com uma posição de compreensão para com os que na véspera se tinham manifestado, enchendo as ruas numa das maiores manifestações de sempre em Portugal.

O mesmo esticar de corda face a Passos – e ao que são as directivas da troika, que exerce aquilo que o próprio Portas classifica de protectorado –, que se repetiria em Maio de 2013, quando, criticando a penalização das pensões, Portas publicamente declarou: “Não quero um cisma grisalho que afectaria 3 milhões de pensionistas. Quero uma sociedade que não descarte os mais velhos.” Clarificando: “O senhor primeiro-ministro percebe que esta é a fronteira que não posso deixar passar.”

Assim como pouco depois reagiu à confirmação por Passos de que a acção do Governo era para seguir numa linha, orientada pelos credores, de prossecução do programa reformista. Esta orientação estava subjacente à subida de Maria Luís Albuquerque a ministra das Finanças, como resposta à demissão de Vítor Gaspar. Portas não gostou. Demitiu-se. Jogou o seu peso e o peso do CDS na sobrevivência do Governo e conseguiu fazer o pleno: subiu formalmente a número dois do Governo, como vice-primeiro-ministro, e à reforma do Estado que já tinha sob sua tutela juntou as negociações com a troika e a orientação da economia, colocando neste ministério o vice-presidente do CDS e seu amigo de infância Pires de Lima.

Resta perceber se Portas vai sobreviver a este exercício de acrobacia política e ideológica em que tem vivido. É possível que venha a estatelar-se no meio do chão, face a uma rejeição do eleitorado cansado de tanto tacticismo, mas os indícios do contrário existem. É possível que Portas saia por cima no final da legislatura, em que o sacrificado político pode ser apenas Passos Coelho e o PSD. E que Portas consiga até dar um exemplo prático de que existem mesmo momentos em que é possível comer o bolo e ficar com ele.

 
 
 
 

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