A violência, a procura de justiça e o regresso à democracia

A eleição deste Governo aconteceu com base numa fraude eleitoral.

Há quem pense que, ao falar da “onda de violência que aí virá”, Mário Soares está a legitimar o uso da violência como arma política ou mesmo a convocar essa violência.

Paulo Portas foi um dos que acharam que “as declarações de um antigo Presidente da República são graves porque elas significam, mesmo que involuntariamente, a legitimação da violência, e, em democracia, a violência nunca é a forma adequada de manifestar uma opinião".

De facto, Soares não declarou que era legítimo usar da violência e apenas alertou para o facto de que o caminho que o Governo está a seguir pode levar à violência e que, precisamente por isso, deve ser imediatamente inflectido.

Não tenho a mínima dúvida de que Soares receia uma explosão de violência – quanto mais não seja porque, uma vez iniciada, ninguém pode prever a sua evolução. E não tenho notícia de que o PS, ou mesmo os “radicais” do BE ou do PCP, se preparem para enquadrar, controlar e liderar essa explosão de violência de forma que sirva os seus objectivos políticos.

Mas sejamos claros: se alguém pensa que a política seguida pelo actual Governo não contém qualquer risco de dar origem a situações de violência social deve começar a tomar os medicamentos que o médico receitou. Uma pessoa no seu juízo só poderia pensar assim se, devido a uma raríssima situação de privilégio, não tivesse sido minimamente atingida pela “austeridade”, se não conhecesse ninguém que o tivesse sido e se tivesse os filmes de António Lopes Ribeiro como único ponto de contacto com a realidade quotidiana dos portugueses. Basta andar na rua e ver e ouvir as pessoas para perceber como a “austeridade” afectou as vidas de todos, como o seu presente os humilha e os desespera, como o futuro dos filhos os angustia, como a sua raiva é palpável, como o seu sentimento de injustiça está ao rubro. E com razão. Não é fácil aceitar que os nossos filhos não vão poder frequentar a universidade, que não podemos comprar os medicamentos de que a nossa mãe precisa, que o nosso filho com necessidades especiais não tenha apoio na escola, que o nosso salário tenha sido reduzido e não permita a extravagência de tomar um café, que a nossa filha esteja desempregada sem subsídio e precise de ajuda para pagar a luz e a água e toda a cascata de pequenas misérias e de tristes vergonhas em que a vida da maioria dos portugueses se tornou.

Como não é fácil aceitar que a sociedade mais justa, igualitária e livre que tentámos construir nas últimas décadas esteja a ser destruída pedra a pedra para favorecer um grupo de privilegiados. Ou que o nosso país esteja ocupado por potências financeiras estrangeiras e que o Governo português se demita de defender o seu país e adopte uma posição colaboracionista. Ou que a democracia tenha sido suspensa e substituída pela obediência aos ditames de Berlim e de Frankfurt.

Paulo Portas tem toda a razão quando diz que, “em democracia, a violência nunca é a forma adequada de manifestar uma opinião". O pequeno problema é que a democracia não é esta coisa que temos, porque a democracia não se resume a votar de quatro em quatro anos. Ou, se ainda é democracia, é “a democracia de baixa intensidade” de que, numa expressão (in)feliz, fala Boaventura de Sousa Santos. A democracia é o regime da escolha pelo povo e a eleição deste Governo aconteceu com base numa fraude eleitoral: foi eleito um partido com um programa e, uma vez contados os votos, outro partido, com outro programa, tomou o poder. Que o tenha feito mantendo o mesmo nome não é a questão substantiva.

Acontece porém que, quando a dignidade das pessoas e a sobrevivência dos seus filhos são postas em causa, a violência pode ser a resposta. Não só uma resposta compreensível, mas justa. Estou a apelar à violência? Não, porque o que resulta da violência não é forçosamente uma solução, nem é necessariamente melhor e pode ser muito pior ainda. Mas na raiz da violência pode estar – e esteve muita vez ao longo da História – uma mais do que compreensível exigência de justiça.

Vivemos um momento político particular: o Governo que temos, legalmente eleito, governa de forma ilegítima. Politicamente ilegítima, porque o seu programa não foi sufragado. Socialmente ilegítima, porque aumenta a desigualdade e a pobreza. Eticamente ilegítima, porque mente e desrespeita os seus compromissos. E não existe uma forma de o parar na sua desfilada. O sistema incipiente de checks and balances que temos em Portugal não funciona. O Governo ignora oposição, parceiros sociais, manifestações, tribunais e a academia e o PR assobia para o lado. O cocktail é explosivo e, como diz Soares, a violência está à porta. E a violência é uma arma política legítima quando não existe outra arma possível.

Se, em democracia, a violência política não é admissível, seria bom regressarmos rapidamente à democracia.

jvmalheiros@gmail.com
 

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