A socratização da maioria

PSD e CDS entraram na idade em que precisam de construir uma narrativa para substituir a realidade.

Quantas portas há para sair do inferno? Ao que parece, duas. Pé ante pé e com caldos de galinha sai-se pela porta do programa cautelar. Com desembaraço e a galope sai-se pela estrada irlandesa. Isto já sabíamos. Mas o que está realmente em causa no jogo das portas do inferno não é o destino do país, mas o futuro político dos partidos da maioria e do presidente da Comissão Europeia. Basta peneirar os jogos de palavras para que vermos o desastre da austeridade transformar-se no milagre da salvação.

O “fim da troika” tem data e hora marcada: 17 de Maio, uma semana antes das eleições europeias. Estas serão ao mesmo tempo a antecâmara das legislativas e de uma nova Comissão Europeia. A coincidência das eleições com o fim do programa de ajustamento é uma ocasião dourada para quem conduziu o processo português, em Lisboa e em Bruxelas. A correcção do défice e da dívida pública estiveram na origem destes três anos de empobrecimento colectivo. Mas, em Maio, o objectivo político não será o acerto de contas com esse período. Pelo contrário, a “fronteira da responsabilidade”, como a definiu Paulo Portas, será uma ocasião dourada para reformular a história.

A fronteira é um tema comum em política. Aponta numa direcção e separa um antes de um depois. Em Portugal, José Sócrates foi o último a glosar as “novas fronteiras” de John Kennedy. Eis que, no congresso do CDS, a ideia de fronteira regressou. Nada de extraordinário. Trata-se apenas de um sintoma de que a maioria de direita chegou à idade socrática, ou seja, à idade em que é preciso construir uma narrativa que substitua a realidade.

O Governo PSD-CDS construiu uma identidade cujo pilar central é a demonização do socratismo, enquanto culpado de todos os males e de todas a irresponsabilidades. À cabeça das quais estão o eleitoralismo, o despesismo e a mentira. Tudo isso José Sócrates fez. E por José Sócrates o ter feito os portugueses elegeram Passos Coelho.

A política portuguesa faz-se de ciclos que se repetem. Como se a memória se esvaísse. Há muito que cada governo que chega lamenta não poder fazer o que prometeu, devido ao estado calamitoso em que o inquilino anterior deixou o país. Em teoria, o príncipe herdeiro designado como sucessor nesta dinastia do esquecimento é António José Seguro. Com a economia a puxar a seu favor, a maioria parece decidida a manter-se no seu posto. Para tanto insiste em lembrar como José Sócrates foi mau para fazer esquecer a catástrofe que foi a governação dos últimos três anos.


Passámos por isso da narrativa da catástrofe à narrativa da redenção. Aproximam-se os restauradores: ao contrário dos idos de 1640, os que governaram durante o “protectorado” querem ser também os libertadores. Miguel de Vasconcelos e D. João IV, o mesmo combate! Como sair do programa de ajustamento já não é resolver um problema do país, é aplicar um programa eleitoral.

Em Bruxelas, Barroso sonha com a possibilidade de poder sair do cargo declarando que salvou o euro. Assim poderá começar a construir o seu personagem de candidato a Belém: a imagem do presidente fraco, vagueando à deriva dos caprichos da sra. Merkel, será milagrosamente substituída pela do “salvador do euro”.

Cavalga-se a falácia do fim da crise, como se as melhorias da economia tivessem resultado das políticas de austeridadeuando o que essas políticas de austeridade radical conseguiram foi atirar tudo ao chão, enquanto as reformas continuam por fazer.

Sim, a maré do crescimento está favorável, mas o ponto de partida da economia está muito abaixo dos valores de há três anos. Vivíamos acima da riqueza que produzíamos, diz-se. Com a austeridade, passámos a produzir menos. Passámos de viver acima do que tínhamos para ter menos com que viver.

Que importa? O jogo eleitoral está lançado. Coligados, sociais-democratas e centristas acreditam que podem derrotar o PS nas europeias. Ou serem pelo menos derrotados por uma diferença escassa – o que, após três anos de crise, equivaleria a um triunfo da maioria e a uma derrota da liderança socialista. As contas, claro, são difíceis de fazer. As europeias são por definição um momento para o eleitorado castigar governos. A insatisfação entre os pensionistas é muito grande e o melhor que o Governo pode esperar é que vá engrossar o caudal da abstenção.

As europeias, de qualquer modo, são um prelúdio. As divisões e a ausência de um discurso à esquerda continuam a ser os maiores aliados da direita. Depois de cortarem o país às postas, PSD e CDS contam com uma oposição cortada às fatias. Não podiam pedir melhor. O único senão é este: ganhe quem ganhar em 2015, a esta distância não se vislumbra quem consiga conquistar uma maioria absoluta. Vai ser preciso muita habilidade para construir a história do milagre que nunca aconteceu. E escolher a maneira certa para sair do ajustamento será o pilar decisivo da narrativa.
 
 
 
 
 
 
 

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