Património, centros históricos e arquitectura

Há poucas semanas, a fachada principal da Reitoria da Universidade do Porto, voltada aos Leões, foi completamente revestida por um enorme painel publicitário. Afinal, o Centro Histórico do Porto foi considerado pela Unesco Património Cultural da Humanidade em 1996 e uma situação como essa, de que é responsável o mas importante organismo cultural da cidade – a Universidade – é, pelo menos insólita. A Reitoria, antiga Academia da Marinha e Comércio, é um dos mais importantes exemplares da arquitectura neoclássica portuguesa e o seu embrulho “Christiano” é reveladora da ideia de mercantilização que se apoderou da palavra “património”.

A reitoria está, porém, longe de ser um caso único. A mercantilização presidiu igualmente a uma série de intervenções que, em tempos recentes, ocorreram no centro histórico. Entre elas sobressai, pela sua violência, a renovação do quarteirão das Cardosas, levada a cabo pela SRU – operação abertamente condenada pela UNESCO – que fez desaparecer o claustro do antigo convento de Santo Elói e destruiu uma série de fachadas traseiras de habitações, algumas delas quinhentistas, cujas frentes se voltam para a rua das Flores. Em seu lugar, ergueu-se um conjunto de alegres e pinturescos cenários, revestidos a azulejo multicor, que fazem inveja ao Portugal dos Pequeninos. A mercantilização, obrigatoriamente “imitativa”, tem outros exemplos; a retirada recente, na rua da Bainharia, de um dos únicos pórticos de arquitectura renascentista existentes no Porto e a sua substituição por um ersatz em granito polido é um dos mais preocupantes. Noutros casos, as intervenções revelam da mais pura ignorância: o revestimento da escarpa das Escadas do Colégio, frente à igreja de S. Lourenço, por uma rede metálica, deturpou por completo o profundo simbolismo clássico do conjunto, em que a obra da natureza – a escarpa – era enquadrada pela do homem – a escada.

Uma cidade é um organismo vivo. Resulta de uma sucessão estratigráfica muito próxima, escrita e reescrita por gerações sucessivas. As preocupações sociais, económicas, estéticas e simbólicas do homem estão na origem dessa sucessão. Assim, as demolições, como as reconstruções, fazem parte de um processo que não se pode pôr em causa; foram e serão sempre um dos motores da paisagem urbana. Quando necessárias, devem avançar; sem essa renovação, o imobilismo congelado dos parques temáticos invade os centros históricos. A esta imobilidade conduziu o conceito de património, encarado como síntese globalizante; a preocupação em substituir o original por duplos andróides é uma consequência desse processo. A essa visão burocrática e sintética deve substituir-se, portanto, a proximidade analítica do primado da arquitectura e do projecto. O que implicará o reconhecimento de que o conceito de património, cada vez mais indexado aos centros urbanos antigos, se foi, em determinada época, instrumental e extremamente útil, rapidamente degenerou, por questões que lhe eram intrínsecas e foram exponenciadas e manipuladas pelo poder político.

Regressando ao caso do embrulho da reitoria: devemos retirar das cidades os painéis, feitos de conceitos grandiloquentes, que completamente as desfiguram…

Docente da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto

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