Os perigos de uma República “endogâmica”

Para lá dos níveis inéditos de “endogamia”, a composição deste Governo reflecte uma tendência essa sim muito preocupante: o isolamento dos partidos e das suas cúpulas face à sociedade civil.

A principal crítica à última remodelação do Governo não contempla perfis, talentos, percursos, programas ou desígnios pessoais ou nacionais: limitou-se praticamente à construção de uma espécie de árvore genealógica com a qual se pretende comparar o Governo a um clã de familiares e seus amigos superintendido por António Costa. Há neste foco tanto exagero como utilidade pública. Exagero porque quando se discute o perfil de um ministro apenas pela sua linhagem comete-se a injustiça de resumir a pessoa à sua condição de filho, mulher ou primo, tornando-a culpada e vítima da consanguinidade; utilidade porque quando um Governo exagera (como é óbvio no caso) nas nomeações de amigos e de familiares de amigos é porque dá sinais de acantonamento e de incapacidade de atrair quadros qualificados.

Pode-se dizer que recrutar ministros a pouco mais de meio ano do final da legislatura é sempre mais difícil do que fazê-lo para um horizonte de quatro anos. A aceitação de um convite nestas circunstâncias exige mais cumplicidades pessoais do que devoção à causa, características que só os mais próximos garantem. O problema é que, para lá dos níveis inéditos de “endogamia”, a composição deste Governo reflecte uma tendência, essa sim muito preocupante: o isolamento dos partidos e das suas cúpulas face à sociedade civil. A cada governo que passa, as caras repetem-se, as linhagens persistem, os círculos de poder reforçam-se, e neste movimento a República caminha para o perigo da oligarquia.

Já lá vai o tempo em que servir o país no Governo era um desígnio partilhado por académicos de prestígio, empresários de provas dadas ou cidadãos que, de uma ou de outra forma, se destacaram nas suas vidas públicas. Nas últimas décadas, os ministros e os secretários de Estado são com cada vez mais frequência pessoas que conhecem o mundo e a vida através de eleições nas concelhias, cargos nas distritais, assessorias nos gabinetes, até que, com um pouco de sorte e de perseverança, lá virá o dia em que se chega ao poder. Seja no PSD ou no PS, as elites partidárias assumiram em exclusivo o trabalho destinado pela República a todas as elites do país. Mesmo que haja condescendência com os nomes desta remodelação, o que está em causa está longe de ser um “não problema”, para citar o Presidente da República. Quando o pessoal dos partidos se tende a congregar em famílias e amigos próximos, o que está em causa é um processo evolutivo que ou é travado ou levará os governos para padrões mais perto do Terceiro Mundo do que da União Europeia.

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