Uma festa feita com o orgulho de dar em Couto Dornelas

Há mais de 200 anos que a aldeia de Couto de Dornelas celebra São Sebastião com a oferta de um almoço a quem por lá aparecer a 20 de Janeiro. A festa, que poderá ter nascido nas invasões francesas, faz-se do prazer de dar, atrai centenas de pessoas de todo o Norte e tornou-se o agregador de afectos

Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido
Fotogaleria
Nelson Garrido

Por volta das dez horas da manhã de ontem, os autocarros começaram a aparecer entre o nevoeiro na descida das serras do Barroso em direcção a Couto de Dornelas. Os seus passageiros enfrentam com risos o ar frio da montanha, a chuva monótona e persistente e a aparência de mesa que se estendia pela rua principal da aldeia ao longo de quase um quilómetro. Dentro de um par de horas, teria ali lugar uma das celebrações mais antigas e originais da tradição rural do norte do país, a Mesinha de São Sebastião. Venha quem vier, seja de Valongo, de Barcelos, de Fafe, de Guimarães, grande ou pequeno, português ou galego, rico ou pobre, ninguém paga o almoço – o 20 de Janeiro, dia do Mártir São Sebastião, é o dia em que a aldeia manifesta a sua generosidade ao mundo para cumprir uma tradição e para garantir o empenho do santo na sua protecção.

Em breve, Couto de Dornelas iria transformar-se num gigantesco restaurante ao ar livre, onde a comida se temperava com a crença nos milagres do santo e com muitos gestos e ritos que tornam irresistível o colorido das festas populares. Ao fundo da rua, a confusão que se vivia na casa do santo, onde a comida estava a ser preparada, era enorme. “Deixem passar”, dizia uma mulher atarefada carregada de panelas. “Maldito fumo”, queixava-se outra com as lágrimas a correrem pela face. Há muitas horas que na sala de entrada da casa ardia uma gigantesca fogueira onde se coziam mais de 300 quilos de carne de porco em dezenas de potes de ferro fundido. O ar era quase irrespirável. 

Protegido na sala do pão, onde umas mil broas se guardavam na vertical em estantes, José Pereira Ferreira olhava para o burburinho em volta da fogueira e justificava a razão de tanto esforço colectivo e de tanta despesa. “Isto é um orgulho. Sempre foi e continuará a ser”, explicava. Fabricar mais de uma tonelada de pão, cozinhar mais de 300 quilos de carne e mais de 100 quilos de arroz e distribuí-los gratuitamente é uma operação difícil, que exige tempo, logística, suor, dinheiro e, muito mais importante, empenho e dedicação. “Isto começa a ser feito dois meses antes”, explica José Ferreira, que já foi presidente da junta local e integra o grupo da Comissão da Fábrica de São Sebastião. É preciso recolher esmolas junto da população, é preciso negociar a ajuda da Câmara de Boticas, é preciso comprar os ingredientes da festa e, mais difícil ainda, é preciso cozinhá-los e servi-los. “Só para cozermos o pão gastamos quatro ou cinco dias e cinco noites, sem parar”, acrescenta.

A distribuição de comida a quem passar não é uma tradição exclusiva de Couto Dornelas – na vizinha freguesia do Salto o dia de São Sebastião é celebrado com dádivas de pão e vinho e nas aldeias de Godiães e de Samão, no concelho de Ribeira de Pena, oferece-se papas de sarrabulho e vinho. Mas em nenhuma outra terra a tradição se exerce com a mesma paixão. Como se em causa estivesse o cumprimento de um dever colectivo. As lendas rezam que a primeira mesinha se fez em 1809, quando os moradores prometeram ao santo fazer a festa se ele evitasse a passagem das tropas napoleónicas pela aldeia e os poupasse às pilhagens. Um nevão forçou os franceses a desviar-se da rota e a tradição ficou consagrada. “Mas um dia, há muito tempo, a festa não se fez e nesse ano deu uma epidemia ao gado que o matou. E depois disso a festa fez-se todos os anos”, diz Artur Dias, 72 anos, 30 dos quais passados nos Estados Unidos. “Eu ouvi essa história muito pequenino e, quem me a contou, foram pessoas que a ouviram de outros”, confirma José Ferreira.

Claro que a mesinha de hoje já não é organizada pelas nove famílias de lavradores abastados, que rodavam entre si na organização, como outrora. Os ingredientes deixaram há muito de ser integralmente produzidos na aldeia. É óbvio que hoje já não são crianças de bata branca a servir o arroz pelas mesas, como Artur Dias fez na sua infância. Porque hoje, como no resto do Barroso, a desertificação fez desaparecer as crianças e as famílias poderosas e globalização da agricultura arruinou a produção de centeio e reduziu os rebanhos que, outrora, “enchiam a serra”. O que não mudou foi a devoção de Dornelas ao seu santo e o militante espírito comunitário da aldeia – um feudo da CDU numa geografia política dominada há décadas pelo PSD.  

Veja-se o caso de António Pires, que há anos é o responsável por angariar esmolas entre os peregrinos. Ou o de Nestor Carneiro, que é o dono do cargo de transportador do santo. Ou o de António Sanches, que todos os anos viaja desde o Canadá “para estar cá e ajudar no que for preciso”. A verdade é que tanta tradição acumulada criou na aldeia uma máquina eficaz de fazer e distribuir comida ao longo da mesa de quase mil metros. Mal o padre acaba a celebração da missa, por volta do meio-dia e passa pela casa do santo para benzer o pão e os potes, todos os elos da organização entram num rodopio nervoso e feliz, como se o momento mais aguardado durante todo o ano estivesse a chegar, como se todas as noites sem dormir chegassem ao momento de remissão.

A comida começa então a ser servida. À frente, um membro da comissão leva uma vara com talvez um metro e meio que serve para marcar as distâncias a que se vão colocar os pães, as malgas de arroz e os pratos de pau onde será colocada a carne. De seguida, António Pires abre o caminho e anima as hostes impelindo-as a “dar uma esmola ao santinho”. Chapéu enfiado a fundo, pele tisnada pelo frio, António é o animador da festa. “Ele tem jeito, já faz isto há muitos anos”, ri-se Francisco Barreto, o cérebro de toda a operação. “Não botem vinho para a toalha, que é de linho”, diz a uma mulher de Valongo refastelada numa cadeira de praia; “Se não fosse o São Sebastião já éramos todos espanhóis”, continua; “É para ver se dá para o arroz”, insiste. Logo atrás, Nestor Carneiro empunha o santo de madeira, com meio metro, dando-o a beijar aos presentes e limpando-o com uma toalha de linho após cada acto de devoção.

Enquanto espreitam a marcha de progresso da carne e do arroz ao longo da fila de tábuas, as pessoas brincam, riem, pedem “dois oiros” ou “três ouros” emprestados (a palavra euro não chegou ainda a todo o Portugal) para a esmola. Alguns improvisam versos. Outros dedicam-se a fundo aos rituais minhotos, com acordéons, em cantares ao desafio. As piadas brejeiras são muitas. Conforme a marcha da carne progride e as garrafas e garrafões se esvaziam, a chuva morrinhenta vai-se esquecendo, os risos aumentam de tom, as brincadeiras multiplicam-se e a festa entra então na sua dimensão profana. Alguns dançam ao som de uma coluna portátil instalada em cima de um tractor. Há por ali uma fuga deliberada aos maus espíritos – exceptuando um espanhol que se tentou apropriar de um prato de madeira.

Por volta das duas da tarde, a mesa começa a ficar deserta. Os panos de linho estão a ser recolhidos. As pessoas retiram em magotes. Muitas cantam e dançam, levando por vezes na mão ou em tupperwares o pão ou o arroz que sobrou. “Ah, a comidinha que boa que era”, regozijava-se Custódia Novais, 81 anos, de Braga, logo antes de esclarecer com solenidade: “Olhe que eu não vim cá só para comer”. Pois, veio também por causa da fé, do santo e do convívio. Ou ainda pela singularidade daquele encontro no frio húmido da rua, onde se sente o dever de articular uma vénia a uma aldeia que dá de comer a quem passa sem pedir nada em troca – para lá da protecção do santo.

A mesinha de São Sebastião há-de ser muito diferente da festa que José Fonseca e Costa filmou para a RTP nos anos de 1960. Mas ainda atrai televisões estrangeiras, que estranham aquele ritual meio sagrado, meio profano e talvez ainda mais a natureza de uma celebração construída pelo prazer e pelo orgulho de dar e de ser reconhecido apenas por isso. Numa aldeia como tantas outras, envelhecida, com o seu tecido económico desarticulado pela Política Agrícola europeia, esse “orgulho” de poder dar que Francisco Barreto, Artur Dias, José Ferreira, António Sanches ou Nestor Carneiro ostentam talvez seja um bom ingrediente para resistir a todas as ameaças. Muito mais do que a comida, é essa manifestação de ser pela generosidade que torna aquela festa num acontecimento notável desse velho mundo rural português sob a ameaça de extinção. 

Sugerir correcção
Comentar