Fim do bipartidarismo em Espanha obriga a reinventar o modo de governar

As legislativas abrem um novo ciclo político em Espanha, fazendo emergir um “jogo a quatro” que exige complicados acordos e a arte de fazer pactos e obter consensos.

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Nas eleições legislativas deste domingo em Espanha não estará apenas em jogo a escolha de um governo mas a transformação do sistema político espanhol. O modelo bipartidário, que dominou a vida política desde 1982, está a desmoronar-se. As duas grandes formações, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), de Pedro Sánchez, e o Partido Popular (PP), de Mariano Rajoy, que até às últimas legislativas somavam mais de 70 ou 80% dos votos, dificilmente chegarão hoje aos 50%. Duas outras forças, acima dos 15%, o Podemos, de Pablo Iglesias, e o Cidadãos, de Albert Rivera, assumem um papel decisivo na cena política, exigindo uma reforma radical do sistema. Exprimem uma maré de fundo.

Serão eleitos os 350 membros do Congresso dos Deputados e 208 dos 266 senadores. Estão inscritos 36,5 milhões de eleitores. Prevê-se uma elevada afluência, na casa dos 75%. Note-se que, há não muito tempo, "o partido da abstenção" reunia a absolutíssima maioria do eleitorado.

A votação de hoje não será a conclusão do processo de mudança. Será a abertura de um novo ciclo, marcado por incerteza e problemas de governabilidade. Interroga-se a politóloga Marta Romero: "Morrerá o bipartidarismo de forma definitiva? Será o PP substituído pelo Cidadãos ou o PSOE pelo Podemos? Não temos suficientes elementos para responder." Mas o eleitorado parece apreciar o novo "jogo a quatro", que torna mais relevante o seu voto.

Assinala o politólogo Pablo Simón: "É uma mudança como nunca conhecemos porque estamos a sair de uma crise política, económica e institucional que nunca tínhamos conhecido, com escândalos de corrupção desde a monarquia às aldeias." Quando Juan Carlos abdicou, falava-se no "fim do regime" herdado da Transição de 1978.

Que dizem as sondagens
Tendo em conta a mega-sondagem do Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS) e as sondagens publicadas no último fim-de-semana, o blogue Piedras de Papel traça um quadro hipotético. O PP, com 25-28%, obteria entre 103 e 128 deputados; o PSOE (20-22%) entre 77 e 94; o Podemos e as coligações afins (17-19%) entre 55 e 64; o Cidadãos (18-20%) entre 53 e 69; a Esquerda Unida (4-5%), de 1 a 5. Os partidos regionais não deverão somar mais de 30 deputados.

A imprevisibilidade dos resultados não vem apenas dos indecisos. Vem sobretudo dos "hesitantes" que têm uma opção mas admitem mudá-la. Explicava há dias o politólogo Jorge Galindo, baseando-se no CIS: "Há 2,8 milhões que estão a pensar votar no PSOE ou noutra opção. Quase 900 mil admitem votar Podemos no seu lugar; um milhão pode fazer o mesmo com os Cidadãos. E há ainda 1,2 milhões que hesitam entre o PSOE e o PP."

Iglesias e o Podemos, embora metendo na gaveta o inicial radicalismo, desistiram do centro, onde são encarados como esquerdistas, para se concentrarem no eleitorado socialista, o que coloca Sánchez na posição difícil de defender a sua esquerda sem esquecer o centro. Dos eleitores que pensam votar em Rivera, 1,2 milhões são de centro-esquerda e apenas 650 mil do centro-direita. "É uma situação completamente inédita", afirma Pablo Simón. "Num cenário de bipartidarismo imperfeito, o PSOE e o PP tendiam a competir pelo eleitorado do centro mas hoje os eleitorados estão mais segmentados e nem sempre se tocam." Havia uma velha regra: quem ganhava as eleições também vencia no centro. Pela primeira vez o "bipartidarismo" está a perder esse monopólio para Rivera.

O PP perdeu 40% do eleitorado que lhe deu a vitória em 2011. Mas tem a vantagem de ter uma sólida base à direita que os outros não lhe podem disputar. No final da campanha, fez um esforço para recuperar votos centristas. Terá sido algo favorecido pela crise catalã e pelos atentados de Paris. A sua táctica na recta final parece ter sido a de garantir uma vantagem de cinco ou seis pontos sobre o segundo partido de modo a tornar quase impossível uma coligação sem o PP. O partido que mais graves riscos parece correr é o PSOE, incapaz de se apresentar como alternativa "natural" ao PP. Resumiu o El País em editorial: "O PSOE não conseguiu preencher o espaço de centro-esquerda e de esquerda que historicamente ocupava."

As últimas sondagens indicam um recuo do Cidadãos, enquanto o Podemos estaria a subir à custa dos socialistas e disputando-lhes o segundo lugar em número de votos. É prudente esperar os resultados.

A governababilidade
Não se deve esperar que estas eleições produzam uma solução governamental fácil. Independentemente da intensidade do "terramoto", que se vem desenhando desde as eleições europeias de 2014 e das regionais de há seis meses, a desmontagem de um sistema não produz um outro pronto a governar e a fazer reformas. De resto, é ocioso falar de coligações sem conhecer os resultados e as maiorias possíveis.

A solução mais falada seria um executivo PP com o apoio parlamentar do Cidadãos, mediante um severo acordo sobre reformas, corrupção e, até, o possível afastamento de Rajoy. A alternativa anti-PP, aliando PSOE, Podemos e Cidadãos parece longínqua, dadas as divergências dentro deste triângulo. Aliar PP e PSOE numa "grande coligação" está fora de causa. De momento, trata-se de especulações.

Rivera e Iglesias sabem que não podem ganhar o direito de presidir ao governo mas não tencionam servir de "muleta" nem ao PP nem ao PSOE, o que os diluiria a prazo. Eles apostaram seriamente em conquistar o primeiro lugar mas as sondagens indicam que ainda é cedo para isso. Têm para já um problema que é a consolidação dos seus eleitorados.

Mas os quatro partidos vão ser confrontados com uma exigência que todos os inquéritos revelam: a necessidade de fazer pactos, de negociar e encontrar consensos perante as várias crises que se cruzam em Espanha, do descrédito das instituições à reforma política, da corrupção ao clientelismo, passando pelas autonomias e pela crise catalã. Estarão todos os partidos conscientes de que deverão prestar contas pelo seu comportamento perante a aspiração de pactos e consensos expressa por 86% dos espanhóis?

É possível que esta seja uma legislatura de transição para pouco mais de um ano (ver entrevista de Fernando Vallespín).

A catarse
A expectativa de "regeneração" que incita os espanhóis a votar em massa decorre de uma "revolta dos cidadãos", sublinha o jornalista José Luís Barbería. Pergunta: "Estamos na senda da reabilitação democrática ou perante uma cosmética política lampedusiana: mudar tudo para que tudo continue na mesma?" E observa: "As formações espanholas só reagiram — e arrastando os pés — quando a exigência de uma reacção catártica ganhou forma na sociedade e bateu às suas portas pela mão dos partidos emergentes."

Outro factor de mudança é a "ruptura geracional", espelhada na revolta dos "indignados" de Maio de 2011 e que serviu de base ao desafio do Podemos, cujo sucesso abriu depois a porta à emergência do Cidadãos. Doze milhões de eleitores, 35% do censo eleitoral, nasceram depois de 1974 e não têm já laços afectivos com a Transição nem conheceram o franquismo.

A politóloga Sandra León fez há meses o diagnóstico dos contraditórios desafios do multipartidarismo. "[Poderá fazer] com que o consenso se converta num elemento essencial da nossa democracia." Mas advertiu: "Um sistema baseado em pactos requer que os cidadãos estejam dispostos a aceitar que os partidos façam concessões no altar do consenso. Isto, que pode parecer óbvio, encerra um paradoxo. As mudanças que se produziram no sistema de partidos têm origem na sensação, por parte dos eleitores, de que os partidos políticos tradicionais tinham traído a sua ideologia ou governado de costas voltadas para as preferências dos seus cidadãos."

O mundo não é perfeito.

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