O que vale uma bandeira?

Será líquido pensar-se que a lei deve ser rigidamente aplicada em qualquer caso?

Élsio Menau, um jovem artista, apresentou na exposição colectiva de finalistas de Artes Visuais da Universidade do Algarve, uma peça artística intitulada Portugal na forca, em que a bandeira portuguesa surge pendurada de uma forca de madeira. Essa peça tinha estado antes exposta num terreno particular em Faro, tendo sido então apreendida pela GNR. Na exposição de fim de curso, a obra foi classificada com 17 valores pelo júri.

Actualmente corre um processo em tribunal, que pode terminar com a prisão do artista, o qual é acusado de, com a sua obra, ter feito uma suposta ofensa à bandeira nacional, prevista no n.º 1 do artigo 332 do Código Penal, que determina: “Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.” (PÚBLICO, 24/06/2014)

As questões colocadas por esta notícia do PÚBLICO são múltiplas e complexas. Antes de tudo o mais está aqui em causa um conflito basilar das sociedades democráticas: deverá uma lei prevalecer sobre a liberdade ou pelo contrário a liberdade legalmente regulada é um princípio inviolável em democracia?

Esta questão maior das sociedades de hoje não tem uma resposta única, nem é um problema que possa ser reduzido apenas a uma visão do mundo. É evidente que, de acordo com os pressupostos filosóficos, ideológicos, éticos e até morais de cada um, o problema será abordado de modo diverso.

Há, no entanto, algumas perguntas que podem ser feitas sobre este caso e sobre como a sua apreciação, decompondo os vários pontos de vista envolvidos, relativiza as certezas que aparentemente cada lado do conflito em causa garante.

Assim será líquido pensar-se que a lei deve ser rigidamente aplicada em qualquer caso? Será que a lei que prevê o suposto crime em causa não poderá ser apreciada abrindo excepções e matizes na sua interpretação e aplicação?

Em causa está um caso de importância maior e que atinge até uma dimensão institucional de primeiro plano. A peça artística usou uma bandeira portuguesa, algo que é um símbolo nacional, logo é o equivalente simbólico do próprio Estado português, tal como é estipulado pela Constituição no seu artigo 11º. E por muito que não se seja nacionalista, nem se queira ter um discurso pseudo-patrioteiro, a realidade da vida em sociedade e em comunidade com a mesma língua e com um espaço territorial comum impõe o reconhecimento de símbolos identitários de grupo, de nação e de país – assim como obriga ao respeito por esses símbolos de identidade nacional.

Mas não é apenas a questão – que só por si não é menor – de estarmos perante um símbolo nacional. Num Estado de direito, o respeito pela legalidade tem de ser defendido e cumprido por todos – sob pena de se entrar em regime de excepções e de imunidades, que acabarão por subverter o próprio Estado de direito e quebrar o seu ponto de partida, que é o princípio de que todos são iguais perante a lei.

Há, porém, como sempre, o outro lado do problema. E este é também ele uma questão de importância maior em sociedades democráticas, já que passa pela certeza de que a liberdade é um princípio fundacional da vida democrática, pelo que a liberdade de expressão e a liberdade de criação artística têm de ser garantidas. E é a própria Constituição que garante no seu artigo 42.º que “é livre a criação intelectual, artística e científica”.

Como se lê na notícia do PÚBLICO, Fernando Cabrita, o advogado de defesa de Élsio Menau, não deixa de considerar que “está em causa a liberdade de expressão” e de admitir que a arte, “por natureza, transcende alguns limites”. Por sua vez, o artista plástico Xana, um dos membros do júri que classificou a obra de arte, considera que se trata “de uma metáfora, num país com a corda na garganta”. E advoga que “a bandeira foi tratada com respeito”, já foi anteriormente usada por este criador e “é um objectivo positivo no contexto da obra de Menau”.

A aplicação da lei não é um mecanismo determinístico, da responsabilidade de autómatos e sujeito a regras matemáticas. Há na intervenção da Justiça e dos seus agentes margem subjectiva, que passa pela própria autonomia intelectual de interpretação jurídica dos juízes, quando elaboram uma sentença. E nesse processo de avaliação autónoma é evidente que cabe aos juízes a percepção de cada caso no seu contexto.

Neste caso da obra de Élsio Menau a compreensão de que a intenção do artista não era “ultrajar a bandeira”, mas usá-la para divulgar a sua mensagem, precisamente respeitando o seu carácter de símbolo e em representação de Portugal, que considera enforcado.

Sugerir correcção
Comentar