Os três dias em que uma ilha da Tunísia é o centro do judaísmo

Os judeus acreditam que Ghriba é o seu templo mais importante em África. Já passou por um atentado e recupera agora da revolução que trouxe o islamismo tunisino às ruas e à política.

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Hoje, começa a peregrinação a Ghriba, realizada durante a festa judaica de Lag Ba’omer Anis Mili / Reuters

Vista de fora, não impressiona. Aliás, em Djerba são muito poucas as casas de dois andares e a sinagoga de Ghriba, a principal da maior ilha da Tunísia, não é excepção. No interior, é o azul dos azulejos e dos arcos e colunas de estilo andaluz que se impõe, mas Ghriba é simples, muito simples, vista de onde quer que seja. A sua importância não se mede pela imponência: é a sinagoga mais antiga de África e os judeus acreditam que ali se guarda a cópia mais antiga da Tora.

Nesta sexta-feira, começa a peregrinação a Ghriba, realizada durante a festa judaica de Lag Ba’omer. Para além da Tora, a Ghriba guarda “uma pedra de Jerusalém, uma das pedras do templo de Salomão, que tem mais de 2600 anos”, diz Khoudir Haniah, o principal responsável pela peregrinação. A tradição diz que a pedra – e uma pequena porta de madeira atrás da qual esta foi colocada – foi trazida por um grupo de refugiados em fuga das tropas babilónicas, que em 586 a.C. destruíram o primeiro templo de Jerusalém.

A Ghriba já foi destruída e reconstruída muitas vezes; as estruturas actuais são do século XIX. Em 2002, foi alvo de um atentado suicida que matou 14 turistas alemães, dois franceses e três tunisinos – um guia muçulmano e dois judeus. “Sofreram tunisinos muçulmanos e tunisinos judeus, sofreram europeus, foi um ataque contra a humanidade”, diz Haniah. “O autor era tunisino mas veio de França, surpreendeu-nos a todos. Os habitantes de Djerba uniram-se, não se viraram uns contra os outros”, garante.

Haniah diz que o ataque não mudou nada. Na prática, mudou muito: a porta da sinagoga deixou de estar sempre aberta, foram instaladas barreiras que impedem os carros de se aproximarem e máquinas de raios X, a polícia está sempre por perto e as visitas diminuíram a pique.

Depois, veio a revolução de 2011, que derrubou Ben Ali e acordou o islamismo político que a ditadura esmagara. A revolta e a vitória dos islamistas moderados do Ennahda nas primeiras eleições livres deixaram a Tunísia numa crise existencial: o país que os líderes (primeiro Bourguiba, depois Ben Ali) tinham laicizado à força afinal também tinha de encontrar lugar para os muçulmanos praticantes e com vontade de exibir o seu fervor.

No início dos anos 2000, participavam na Ghriba dez mil judeus vindos de fora da Tunísia. Depois do atentado de 2002, os números foram recuperando aos poucos até chegarem aos 4000, em 2010. O ano passado, vieram menos de 2000 peregrinos a Djerba, uma ilha com 130 mil habitantes.

Moções de censura
A transição na Tunísia tem tido muitos solavancos, mas ao contrário do que aconteceu nos outros países árabes abalados pela vaga de manifestações de 2011, as negociações e o consenso conseguiram impor-se e o país já tem uma nova Constituição, é agora governado por um executivo de coligação e prepara-se para realizar eleições legislativas e presidenciais em Novembro. Nada disto significa que as diferenças tenham ficado para trás: por causa da peregrinação a Ghriba, 80 deputados lançaram moções de desconfiança contra dois ministros, que acusavam de querer normalizar as relações com Israel.

As moções, contra a ministra do Turismo, Amel Karboul, e o secretário de Estado da Segurança (Ministério do Interior), Ridha Sfar, acabaram por ser retiradas há uma semana. Entretanto, Sfar explicara que não há nenhuma normalização em curso e que o país não reconhece passaportes israelitas – apesar de conceder autorizações especiais de entrada a turistas e peregrinos vindos de Israel. Pelo meio, o primeiro-ministro, Mehdi Jomaa, descreveu a polémica como “um falso debate” e pediu que se evitasse a controvérsia, com o aproximar da peregrinação, que se realiza entre sexta-feira e domingo.

Tâmaras e orações em ovos
Com mais ou menos polémica, a peregrinação nunca deixou de acontecer. E se depender de Khoudir Haniah assim continuará. Numa visita à sinagoga a semana passada, o aumento da segurança e os preparativos já eram visíveis. Por estes dias, todo o complexo, que incluiu um grande pátio coberto que costumava abrigar os peregrinos em viagem, já estará decorado com flores artificiais e os pratos tradicionais (comida kosher tunisina, como o couscous, para além de boukha, uma bebida alcoólica feita a partir de tâmaras) já devem estar prontos a ir ao forno.

“Durante a peregrinação vêm as senhoras que querem casar-se ou ter filhos. Abre-se aquela porta de madeira e elas deixam os ovos com as suas orações, junto ao pedra do templo de Salomão”, descreve Haniah, que como tantos tunisinos deixa escapar algumas palavras de francês por entre o dialecto tunisino do árabe. Os pedidos são inscritos nos ovos mas também podem ser deixados em papelinhos que são enfiados nas aberturas de um painel de madeira trabalhado – como se fossem os papelinhos deixados entre as pedras no Muro das Lamentações de Jerusalém.

Haniah acreditava que este ano viriam 3000 a 4000 peregrinos; depois da polémica com os deputados islamistas estima agora que venham entre 2000 e 3000. “Quanto mais peregrinos vêm de Israel, mais gente vem do resto do mundo. É um símbolo de que tudo está bem, de que judeus e muçulmanos podem continuar a encontrar-se e a viver em comunidade, como aqui, em Djerba.” Desta vez, Haniah conta que venham pelo menos 300 peregrinos de Israel.

Trabalho e turismo
Há gente a chegar de todos os recantos do mundo, mas a maioria vem mesmo de França, para onde muitos tunisinos imigraram. “Muitos descendentes de tunisinos daqui vêm ver a família ou até procurar com quem casar”, explica Haniah, um bonacheirão de 44 anos que fala a gesticular sem parar e a sorrir muito, sempre a semicerrar os olhos.


Orgulhoso, Haniah empunha a chave, a sua chave, enquanto conta como já foi um dia buscar a Tora “mais antiga do mundo” para a mostrar a Silvan Shalom, actual ministro da Energia e da Água, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Ehud Olmert, que nasceu em Gabès, na Tunísia.

Lamentando o aumento da segurança – “nós somos tunisinos e o Estado tem de nos proteger, eu entendo” –, Haniah sente a sinagoga como a sua casa e a sua missão. “A chave tenho-a eu e abro o templo quando quero, mesmo fora do horário, mesmo quando a polícia me quer impedir”, garante. “A Ghriba é o meu coração, não saio daqui. Já me ofereceram trabalho em Israel, mas a minha alma está nesta chave, não vou deixá-la a ninguém.”

A comunidade judaica na Tunísia não parou de diminuir nas últimas décadas – nos anos 1950 eram 110 mil judeus; hoje, serão uns 1700. “Só parte quem não tem trabalho”, assegura Haniah. E é também por isso que esta peregrinação é muito importante. O turismo, principal fonte de receitas da Tunísia, ainda não recuperou da revolução. “Há um ditado: se Ghriba corre bem, a época turística vai de certeza ser boa.” 

A jornalista viajou a convite do Turismo da Tunísia e da Soltrópico

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