O “país do futebol” tem o melhor e o pior do futebol

Brasil é o principal exportador de jogadores e o único pentacampeão mundial. Baixa média de espectadores, violência e corrupção são o outro lado deste paradoxo.

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É comum haver jogos no Brasil com poucos espectadores Nelson Garrido
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Neste Fluminense-Resende, em Janeiro, apenas 7000 pessoas foram ao estádio Nelson Garrido

Juca Kfouri, jornalista brasileiro e colunista da Folha de São Paulo, ri-se e conta uma anedota. É mais ou menos assim: Deus criou a Europa e de seguida a América. Virou-se então para os europeus e disse: “Na América, vou criar um enorme país chamado Brasil, com 8000 km de costa, um litoral belíssimo, sem catástrofes naturais e vou lá pôr os melhores jogadores de futebol”. Espantado, o italiano protestou: “Mas Deus, que é isso? Não têm vulcões, nem terramotos, vão ter paisagens lindas e ainda ficam com os melhores jogadores de futebol?”. Perante o protesto, Deus respondeu: “Vê só os dirigentes que eu vou pôr lá. Vão ser os piores.”

A anedota serve para falar sobre o paradoxo do futebol brasileiro, capaz de produzir alguns dos maiores talentos do futebol mundial, mas, ao mesmo tempo, mergulhado em problemas, da crise financeira à violência, passando pela corrupção, pela desorganização e pelos estádios vazios.
“Essa anedota é a mais pura verdade”, diz Juca Kfouri, profundo conhecedor do futebol brasileiro e crítico da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a entidade que organiza os campeonatos nacionais de futebol e gere a selecção brasileira.

Comecemos pelos jogadores. O Brasil é o principal exportador de futebolistas para os campeonatos europeus, que albergam os melhores clubes do mundo. Segundo dados do Observatório de Futebol do Centro Internacional de Estudo do Desporto (CIES), nos últimos anos o Brasil tem tido sempre o maior contingente de jogadores estrangeiros na Europa: 529 em 2009, 566 em 2010, 524 em 2011, 515 em 2012 e 471 em 2013.

E, obviamente, não se trata apenas de uma questão de quantidade. Nos últimos 20 anos, em cinco ocasiões o prémio Bola de Ouro foi para brasileiros (Ronaldo em 1997 e 2002, Rivaldo em 1999, Ronaldinho em 2005 e Kaká em 2007). E o prémio jogador do ano da FIFA, desde 2010 fundido com a Bola de Ouro, foi oito vezes para jogadores brasileiros entre 1991 e 2009.

As transferências de jogadores, principalmente para a Europa, também representam uma importante receita para os clubes brasileiros. Segundo contas do PÚBLICO, com base nos dados do site Transfermarkt, nos últimos oito anos os clubes brasileiros receberam mais de 1000 milhões de euros (mais de 3000 milhões de reais) em vendas de jogadores e gastaram apenas 438 milhões de euros em compras.

Além da qualidade individual dos jogadores brasileiros, a selecção “canarinha” é também a mais bem-sucedida. Participou em todas as edições do Mundial e venceu a prova por cinco vezes, duas façanhas que nenhuma outra selecção conseguiu.

Os títulos da selecção e a produção constante de novos craques contrastam, porém, com o nível do campeonato brasileiro, quase mais falado pela violência, os estádios vazios e as polémicas do que pelos golos.

Em 2013, a média de espectadores no Brasileirão foi de 14.900 pessoas. “O que nos coloca em 16.º do ranking mundial”, diz o economista Fernando Ferreira, director da Pluri Consultoria, uma empresa de São Paulo dedicada ao estudo do futebol. “A média baixa para 7200 considerando as quatro divisões do campeonato brasileiro, mais a Copa do Brasil, e se considerarmos todos os campeonatos (incluindo estaduais), cai para quatro mil por jogo.” A taxa de ocupação dos estádios no ano passado não foi além dos 26%.

Estes números servem para Juca Kfouri rebater a ideia, tantas vezes repetida, de que o Brasil é o país do futebol. “Se há mentira que o brasileiro adora repetir é que o Brasil é o país do futebol. Não é. A Inglaterra é muito mais país do futebol do que o Brasil, porque reverencia muito mais o jogo”, diz o colunista da Folha, argumentando: “Em toda e qualquer pesquisa de opinião que se faça no Brasil sobre tamanho de torcidas, o primeiro contingente, na casa dos 27 ou 28%, é de pessoas que dizem não se interessar por futebol. Só depois vêm Flamengo, Corinthians, São Paulo...”

Mesmo que se admita que a paixão dos brasileiros pelo futebol está sobrevalorizada, é legítimo perguntar por que razão os adeptos não vão mais ao estádio. O que justifica que um país com cerca de 200 milhões de habitantes tenha uma média de espectadores nos estádios inferior às segundas divisões inglesa e alemã?

Fernando Ferreira diz que poderia enumerar várias razões, mas destaca cinco: os preços dos bilhetes, a violência das claques (morreram 30 pessoas em estádios em 2013 e ainda na semana passada um adepto foi atingido mortalmente por uma sanita dentro do recinto), o excesso de jogos com pouca importância (“somos o único país do mundo que ainda tem campeonatos estaduais ocupando 2/5 do calendário”), a fragilidade financeira dos clubes; e os problemas de transportes. “As grandes cidades brasileiras têm problemas seriíssimos de violência, trânsito e transporte público. Isso dificulta a chegada e saída do público dos estádios, principalmente quando os jogos ocorrem mais tarde. Nessa situação, as pessoas preferem não arriscar e assistir via pay per view em casa, com conforto, segurança e ainda pagando menos”, explica o economista. Não raras vezes, há jogos às 22h, que são transmitidos depois da telenovela, uma instituição no Brasil.

Muitos destes problemas estiveram na origem do Bom Senso FC, um movimento de jogadores que exige mudanças no futebol brasileiro, especialmente na organização do calendário (quase 85% dos clubes não têm actividade durante o ano inteiro, ficando parados após os estaduais) e no controlo das finanças dos clubes.

“É triste ver que, apesar do potencial gigantesco, o futebol é tratado amadoramente como um circo de uma cidade do interior”, disse ao PÚBLICO Paulo André, ex-jogador do Corinthians, actualmente na China, e um dos líderes do Bom Senso FC, que tem centrado as suas críticas na CBF. No final do ano passado, o movimento fez alguns protestos originais, com jogadores a sentarem-se no relvado durante um jogo ou a trocarem passes durante um minuto. A greve é uma ameaça em cima da mesa, embora ainda não tenha havido acordo entre os jogadores. O movimento, no entanto, ganhou notoriedade e a Presidente Dilma Rousseff deverá reunir-se em breve com representantes do Bom Senso FC.

Um dos males do futebol no Brasil, diz Juca Kfouri, é uma classe dirigente “inepta, corrompida e corruptora”. Entre 1989 e 2012, a CBF foi presidida por Ricardo Teixeira, ex-genro de João Havelange, presidente da FIFA entre 1974 e 1998. Apesar de durante anos ter sido alvo de suspeitas de corrupção, Ricardo Teixeira só abandonou a CBF em 2012, após um caso envolvendo um jogo particular das selecções de Portugal e do Brasil, em 2008, em Brasília (vitória brasileira por 6-2). “Ele cometeu um erro, mais ou menos comparável à célebre prisão do Al Capone, que foi preso não pelo contrabando de bebidas, mas por dívidas fiscais”, explica Juca Kfouri. “O Ricardo Teixeira se envolveu no amistoso [particular] Portugal-Brasil em Brasília, com Sandro Rosell, ex-presidente do Barcelona, que montou uma empresa-fantasma. Para este jogo foram investidos nove milhões de reais de dinheiro do governo do distrito federal. O Ricardo Teixeira nunca tinha feito isso, porque o sábio João Havelange o orientou para que nunca a CBF recebesse um tostão de dinheiro público, de modo a que nunca fosse fiscalizada pelo Tribunal de Contas da união. Então cometeu esse equívoco. Neste amistoso de festa, o governo de Brasília patrocinou o jogo, pôs nove milhões na mão de Sandro Rosell, cuja empresa tinha como endereço uma fazenda de Ricardo Teixeira. E ele percebeu que ia ser apanhado, vendeu tudo o que tinha no Brasil e foi embora.”

Com a queda de Ricardo Teixeira, José Maria Marin assumiu a presidência da CBF. “É uma CBF piorada. Os hábitos morais são idênticos, com a agravante de que José Maria Marin foi serviçal da ditadura brasileira”, aponta Juca Kfouri. “É famoso por ter feito um discurso como deputado que culminou com prisão, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. E é mundialmente famoso pelo episódio da medalha, que embolsou numa premiação de juvenis na Taça de São Paulo, a 25 de Janeiro de 2012. Ele era um dos que punham medalhas no pescoço dos vencedores e, quando ninguém estava olhando, pôs uma no bolso”. O caso correu o mundo e, mais tarde, Marin veio dizer que se tratou de uma cortesia da organização.

Este é apenas mais um exemplo daquilo a que Fernando Ferreira chama “o paradoxo do futebol brasileiro”: “Somos a sétima economia do mundo e um país com tradição de futebol. A péssima situação de nossos clubes e campeonatos evidencia que temos um problema sério de gestão.”

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