“Apanhava não porque gostava, apanhava porque gostava dele”

O Brasil está no sétimo lugar dos países com mais mortes de mulheres por agressão. No bairro do Calafate, em Salvador, uma organização combate a violência doméstica.

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Marta Leiro decidiu fundar o Colectivo Mulheres do Calafate, uma organização que luta contra a violência doméstica Vera Moutinho

Há 22 anos, Marta Leiro decidiu fundar o Colectivo Mulheres do Calafate, uma organização que luta contra a violência doméstica. Ela, assim como as sete fundadoras, foi vítima de um problema que afecta uma brasileira a cada cinco minutos, sendo que em 80% dos casos o agressor é o companheiro.

Lemos estes dados num grande cartaz na sede das Mulheres do Calafate, assinado por várias instituições como a Organização das Nações Unidas. O pequeno escritório, que fica numa rua inclinada do bairro, está normalmente aberto de manhã. Tijolos à vista, graffitis nas paredes, lixo nas ruas, assim são as ruas do Calafate, uma favela em Salvador (Bahia) onde os taxistas não querem entrar. Ainda no fim-de-semana anterior à nossa visita, a 5 de Fevereiro, uma mulher tinha levado uma facada na cabeça do seu companheiro.

No balcão do Colectivo espalham-se prémios a Marta Leiro, mas ela diz a rir: é “muito prémio e pouco dinheiro”. Lembra pelo que passou: “Eu me anulei para a vida, para a família, para o próprio movimento [do Colectivo]. Não vivia mais em função do que gostava de fazer, mas em função da pessoa com quem vivia. E essa anulação leva você a ceder a atitudes de agressividade, de violência. A baixa auto-estima [fez-me sentir sem] meios para sair daquela situação. Acabei assim sem força para fazer o que fazia, vivia somente para o relacionamento e isso [abriu] o caminho para a violência psicológica, patrimonial, física. Atrapalhava até a vida financeira. Afecta tanto a sua mente que você não produz. Eu me sinto alegre na minha parte de criatividade, e eu não era mais criativa naquele período. Trabalhava na superintendência de política para as mulheres na prefeitura e me via sem motivação, sem ânimo, sem encantamento de realizar as coisas, de contagiar, como foi no começo das Mulheres do Calafate.” 

Com cerca de 50 associadas, o grupo atende umas 10 pessoas por dia, diz Marta Leiro, agora sentada no terraço de sua casa, uma moradia mesmo à entrada do bairro. A família de Marta Leiro – mãe, filha, neto, irmã, sobrinhas – vai entrando e saindo de casa. Ela é uma aglutinadora nata e uma mulher activa: ao lado de casa criou os Lanches Margarida, negócio de venda de salgadinhos, que gere com outras Mulheres do Calafate.

O Colectivo faz também itinerários pelo bairro para mostrar que não é só violência e tráfico de droga. Mostra desde os locais que serviam de lixeira a casas de empreendedoras como a mulher que constrói tudo em vidro. “A gente não quer vender a nossa pobreza, a gente quer que entendam a nossa história, a nossa luta”. Custa 25 reais, com direito a lanche, guia e segurança.

Marta Leiro teve três relacionamentos, e no último o marido batia-lhe. “Era uma batalha”. Ele ameaçava-a até com uma arma. “Não é nada fácil. Você olha para o espelho e diz: porque é que está nisso?” Marta tinha casa, tinha trabalho, tinha independência, “mas a dependência emocional é algo muito doido”. 

Na altura, já tinha dois filhos. O que a mantinha agarrada? “Era não dar o braço a torcer, não mostrar à sociedade que fracassei num relacionamento.” Outra razão: “Era o capricho mesmo de dizer: ‘Não, ele vai mudar, é uma questão de construção, ele foi educado para isso, pode ser deseducado para a questão da violência’. Era uma esperança que mudasse de comportamento. Mas foi um investimento em vão.”

Nessa altura, pensou até em acabar com o Colectivo, não fazia sentido estar a sofrer um problema que tentava resolver nas outras mulheres. Ser feminista e passar por essa situação angustiava-a ainda mais. “Como temos consciência, a gente sabe que não é certo aquilo. E é a pior situação, ter conhecimento e conseguir ver que aquilo não é certo, que tem que sair daquela situação, e não consegue ter força porque já está numa depressão. Nesse último relacionamento parecia uma questão psicológica mesmo, eu me estranhei.”

Esta não tinha sido a primeira vez. Já com o primeiro marido sofrera outro tipo de violência: ele chamava-lhe “burra, gorda, feia, tudo que deixava a gente para baixo”. O segundo marido dizia: “Ou eu, ou o Colectivo.”

A última história acabou com o companheiro assassinado numa troca de tiros. Ele tinha sido forçado a sair da comunidade do Calafate, entrou noutro relacionamento, mas ainda existia um vínculo entre os dois, “muito do cuidado, da preocupação”. “Parecia que cuidar dele me dava um sentimento de prazer, mas era uma coisa muito mais materna, era uma coisa muito dolorosa essa situação”, diz, baixando o tom de voz.

Manifestação “brutal” do machismo
No Brasil, “a vida pública” das mulheres “incomoda os homens”, a “vida de militância, em organização, conhecendo pessoas, fazendo cursos”. É um país machista, considera, onde ainda há muitos homens que “querem restringir o mundo das mulheres”.

E a violência contra as mulheres dentro de casa torna-se “a manifestação mais brutal do machismo”: “O sentimento de posse, essa relação de achar que a mulher tem que ser submetida ao homem, é o que mais prevalece, é toda a cultura patriarcal”, diz, lembrando a Lei Maria da Penha.

A Lei Maria da Penha entrou em vigor em 2006 e pune as agressões contra as mulheres – foi feita em homenagem a Maria da Penha, uma mulher que chegou a levar um tiro do marido. Maria da Penha, que ficou paraplégica em sequência desse ataque, poderia ter morrido. O Brasil ocupa o 7.º lugar dos países com mais mortes de mulheres por agressão, num ranking de 84 países feito pela Organização Mundial de Saúde a partir de dados de entre 2006 e 2010: 4,4 homicídios por cada 100 mil mulheres (Portugal estava em 72.º lugar).

É para esta realidade que as Mulheres do Calafate tentam alertar, mais do que dar comida ou ter um papel assistencialista, daí que Marta Leiro diga que não é uma associação “muito popular”. “A linha é mais de consciencialização do patriarcado, do racismo, etc. Quando vêm procurar, encaminhamos para a delegacia e acompanhamos. Porque a gente quando sofre violência doméstica fica com medo, sofre depois violência institucional! Não tem um atendimento adequado – e aí acompanhamos, fortalecemos a mulher para não desistir, porque a justiça é lenta, demora para marcar audiências…”.

O objectivo das Mulheres do Calafate também não é separar os casais, é tentar que os casais se entendam e que o homem mude o comportamento, sublinha.

“Ao lado das companheiras eu busco garra, eu busco força, eu tomo a minha cervejinha, eu danço, eu me divirto, então aquilo é a minha auto-estima, a minha alegria é essa, não fico para baixo”, diz-nos Elba Lopes, 28 anos, há anos no Colectivo. Ela passou por diversas fases com o marido, desde a denúncia à polícia até à ameaça de denúncia à polícia quando ele tentava agredi-la depois disso. Está com ele há 13 anos, numa relação que já teve altos e baixos. “A minha segurança é que eu ameaçava ele: ‘se você tocar em mim eu ligo para o número que puxa sua ficha’. Hoje eu corro atrás dos meus objectivos, não sou mais aquela que baixa a cabeça, a quem ele diz: ‘não vai’. Eu vou, porque dependo de mim.”

Elba Lopes interrompe-nos em casa de Marta Leiro quando lhe perguntamos porque é que se mantinha no relacionamento. “A pessoa que está fora da violência só sabe julgar, perguntar: ‘porque é que você ainda está nisso?’ Para a gente que está dentro, é difícil. É difícil de sair porque tem filhos, e uma mãe que fala que ele é pai dos seus filhos – minha mãe sempre foi contra mim. A pessoa que está fora diz: ‘mulher lerda, está apanhando do cara’. Você sabe que vai apanhar, que vai sofrer pressão psicológica. Você mistura o sentimento com o medo, a pessoa é agressiva… Mas aí diz: ‘eu gosto dele’. A mistura de sentimentos é tão grande… E você fica. Porque é o gostar. Quem gosta não perde o gostar de uma hora para outra. Apanhava não porque gostava, apanhava porque gostava dele.”

Muitas mulheres calam-se por vergonha. Marta Leiro e Elba Lopes falam abertamente porque é importante “até para a gente entender porque é que as mulheres continuam naquela situação”, dizem. “Viver em situação de violência não é uma morte da matéria, não é assassinato”, comenta Marta Leiro. “Mas a vida em violência se vai apagando.”

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