Eurodeputados entre a crítica à troika e a certeza do mal necessário

Relatórios da actuação da troika nos quatro países intervencionados debatidos no Parlamento Europeu: houve falta de transparência e sobraram impactos sociais negativos. O processo foi doloroso, mas está a dar resultados, e se o BCE tivesse agido mais cedo podia evitar resgates.

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Membros do Parlamento Europeu em Estrasburgo FREDERICK FLORIN/AFP

Terá actuado sem base legal, não prestou contas a ninguém, deixou um rasto de pobreza; mas era única solução perante a iminência da bancarrota e apesar do processo doloroso, está a resultar. Esta foi a dicotomia que acompanhou o debate da tarde de quarta-feira no Parlamento Europeu sobre a actuação da troika nos quatro países intervencionados – Portugal, Grécia, Irlanda e Chipre.

Os dois relatórios, que assumem a forma de propostas de resolução, são votados nesta quinta-feira ao início da tarde. Apesar de já terem sido aprovados na comissão, de os autores serem um socialista e um democrata-cristão – as principais forças do Parlamento -, e de os documentos terem acolhido uma série de propostas de todas as bancadas, a votação pode acabar por surpreender e ser equilibrada. Mas os dois grupos parlamentares mostram-se confiantes.

O facto de ter sido debatido durante três horas e meia durante a tarde de quarta-feira no hemiciclo em Estrasburgo e ter tido intervenções de uma centena de eurodeputados é bem revelador do quanto o conteúdo do relatório acende discussões.

O relatório de investigação sobre o papel e as operações da troika (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional) nos países sob assistência financeira - elaborado pelo eurodeputado austríaco Othmar Karas, do Partido Popular Europeu (PPE, democrata-cristão) e pelo francês Liem Hoang Ngoc da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D) - debruça-se sobre a situação económica e financeira dos países no início da crise, o conteúdo dos memorandos de entendimento e o impacto das políticas prosseguidas na evolução económica e social.

A equipa da Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários, que se deteve nas questões macroeconómicas e institucionais, faz também uma avaliação do mandato da troika e do seu método de funcionamento. Os eurodeputados estiveram nos países intervencionados, onde inquiriram Governos actuais e anteriores e comissões parlamentares.

Podia ter sido pior
Nas conclusões, os eurodeputados reconhecem que as consequências para os países e a União Europeia no seu conjunto poderiam ter sido piores se não houvesse ajuda financeira da troika. Critica-se a falta de transparência na negociação dos memorandos e na informação dada aos parlamentos nacionais, a falta de legitimidade democrática e de responsabilização da troika. Esta actuou em autêntica “roda livre”, sem ter mandato de qualquer entidade europeia supervisora e sem prestar contas. O relatório recomenda, por exemplo, a criação de um Fundo Monetário Europeu entre outros mecanismos financeiros e bancários de ajuda, e a aprovação de um plano de recuperação social para os países intervencionados. E pede que não se aplique a mesma receita a países e realidades diferentes – ou seja, a cada corpo, o seu fato.

O segundo relatório, elaborado no âmbito da Comissão do Emprego e dos Assuntos Sociais pelo eurodeputado espanhol Alejandro Cercas, também do S&D, centra-se nas questões do emprego e nas consequências sociais dos vários programas de ajustamento. E o cenário não é bonito. Com a aplicação da austeridade imposta pelos programas de ajustamento, aumentou o desemprego e a emigração, foram encerradas muitas pequenas e médias empresas, os níveis de pobreza aumentaram, os salários foram reduzidos. A que se soma a deterioração das funções sociais do Estado devido à diminuição na despesa social, com cortes na educação, saúde e prestações sociais, que levaram a um impacto negativo na qualidade e no acesso universal aos serviços básicos.

Grande crise=grandes erros
Falando perante os deputados, Othmar Karas argumentou que a intervenção da troika deve ser vista como uma “solução transitória” que foi necessária “para evitar a falência” dos países e do euro. Houve erros? Muitos, mas isso decorre da dimensão da crise e da falta de preparação das instituições políticas e financeiras. Por isso “não havia alternativa à troika”. Mas, garante Karas, “os objectivos foram conseguidos: em todos os países sente-se uma recuperação económica e esperamos que nos próximos anos se consiga controlar o desemprego”.

Para o futuro, Othmar Karas diz que se exige “uma task force de crescimento, um plano B e um estudo da comissão sobre os efeitos sociais e económicos das medidas de austeridade”, além, entre outros mecanismos, como o Fundo Monetário Europeu, e de um processo de controlo que passe pelo Parlamento, com regras que permitam evitar incumprimentos e que exijam mecanismos de fiscalização.

Liem Hoang Ngoc criticou a acção do BCE por usar a “bomba atómica” – o programa OMT, que permite a compra de dívida dos Estados – demasiado tarde, apenas em 2012, para a Grécia. “Se tivesse usado mais cedo evitaria o contágio a Portugal e Chipre”, disse o eurodeputado socialista, que defende a reestruturação de parte das dívidas. E também deixou farpas ao Eurogrupo, que considerou co-responsável pela solução encontrada.

O eurodeputado lembrou o quadro social negro nos países intervencionados e defendeu que uma das virtudes do relatório é “estabelecer um rumo de actuação” para os próximos Parlamento e Comissão. “Perante alternativas, as decisões foram tomadas na maior das opacidades e é essa opacidade que choca os cidadãos”, avisou Ngoc, defendendo a necessidade de “mais democracia” nestes processos – e isso passa por envolver o Parlamento Europeu, mas também os nacionais, os parceiros sociais e respeitar os tratados e os direitos sociais.

Foi doloroso, mas já há resultados... para uns são "bons", para outros "péssimos"
Na sua intervenção, o comissário europeu dos assuntos económicos, Olli Rehn, justificou as “escolhas difíceis” que foram tomadas com a imponência da crise com que os países – e por arrastamento a União Europeia – se viram confrontados. “A troika foi criada a partir do nada para impedir a implosão económica da Europa”, disse o comissário, realçando ser necessário “respeitar o papel, a independência e o mandato” de cada instituição que a compõe. Admitiu que a troika é um sistema “complexo” e garantiu que sempre funcionou em “cooperação” com os parlamentos, Governos nacionais e dialogou com os parceiros sociais, tentando contrariar a tese de que funcionou em “roda livre”.

Olli Rehn considerou que apesar de ter havido “um processo doloroso de ajustamento”, os resultados acabaram por aparecer e a troika, afinal, cumpriu pelo menos parte dos seus objectivos. “A economia não entrou em colapso nem o euro se desfez, e o crescimento voltou.” O comissário referiu a conclusão do programa da Irlanda, em Dezembro passado, como planeado, e disse que as perspectivas económicas para Portugal “acabaram de ser revistas em alta e o país continua o cumprimento para sair do programa em Maio”. Na Grécia, o cenário é menos animador: são conhecidas as “dificuldades de pôr o programa em funcionamento, sobretudo pela falta de unidade nacional, mas pela primeira vez há um excedente primário nas contas públicas”.

O comissário Laszlo Andor apontou que a análise mostra que é preciso “reconstruir a União Económica e Monetária e a implementação da união bancária é urgente” e que em situações de crise se devem mobilizar os fundos estruturais e de investimento por serem “os instrumentos de solidariedade concreta da União”.

As três horas e meia de debate animado, com intervenções relâmpago de entre um a dois minutos por uma centena de eurodeputados, deixaram clara a dicotomia das percepções sobre a actuação da troika e as suas consequências. Ora lembraram a iminência da bancarrota que justificava respostas urgentes, argumentando que a falta delas teria provocado consequências bem mais graves, e em cadeia dentro da União Europeia. Ora justificaram que as dívidas só se tornaram realmente insustentáveis depois da intervenção da troika.

Se uns apontavam o recomeço da Primavera para as economias resgatadas com exportações a subir e os indícios de crescimento, logo outros respondiam com as altas taxas de desemprego, pobreza e crescimento da dívida. Houve muitos que lembraram a actuação despesista e irresponsável dos governos, outros responderam com a envolvente internacional de crise. E houve uma nítida clivagem entre eurodeputados de países intervencionados, no Sul da Europa, e os considerados países ricos, mais a Norte, com intervenções duras em que um parlamentar holandês ofereceu a uma cipriota a sua solidariedade recomendando-lhe que o seu país “saia do euro”.

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