As orgulhosas cidades do futuro

Na China, a ideia de cidade está ligada à de utopia, como na Europa acontecia na Renascença. No entanto, nessas imensas metrópoles de sonho, nunca se vê o céu. Aqueles que foram os grandes erros urbanísticos do Ocidente parecem estar a ser repetidos, com consciência e orgulho

Zona financeira de Pequim
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Zona financeira de Pequim Jason Lee/Reuters
Raparigas a fazer compras em Xangai
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Raparigas a fazer compras em Xangai Philippe Lopez/AFP
Pudong, a zona financeira de Xangai
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Pudong, a zona financeira de Xangai Carlos Barria/Reuters

Cada cidade da China tem um museu do orgulho. Hoje, em todo o mundo desenvolvido, há um mal-estar em relação às grandes cidades.

Uma má consciência que resulta da fraca qualidade de vida que os grande centros urbanos proporcionam. A poluição, a desumanização dos relacionamentos, a criminalidade, tudo parece ser mau nas cidades modernas.

A tendência no mundo desenvolvido, pensava-se, era fugir das cidades. A vida no campo, os meios pequenos, as comunidades de dimensão familiar, onde se pode andar de bicicleta e estar em contacto com a Natureza, isso é que é o ideal de vida dos bem-pensantes do Ocidente. Nos EUA, os ricos mudam-se para os subúrbios, onde há melhor qualidade de vida. Na Europa retira-se o trânsito automóvel dos centros e zonas históricas, promove-se o jogging e o uso da bicicleta. As cidades tal como (ainda) existem são um pesadelo histórico, uma vergonha civilizacional herdada dos tempos da revolução industrial…

Nada disto faz sentido na China. Cada cidade tem o museu da cidade, para mostrar orgulhosamente o património que se construiu, a magnificência do meio ambiente concebido e criado pelo ser humano. E os planos para construir mais, no futuro. O maior de todos esses museus é o de Xangai, que é também a maior cidade da China, e do mundo. Intitula-se Centro de Exposição e de Planeamento Urbano de Xangai e situa-se num edifício enorme e ultramoderno, todo em cristal, em forma de pagode, no centro da cidade.No hall principal há uma maqueta gigante, com 600 metros quadrados, a uma escala de 1:500, da cidade. A que existe hoje e alguns elementos que ainda estão a ser construídos, ou estão planeados. As alterações na cidade real vão sendo introduzidas na maqueta-modelo, mas a mudança é tão rápida que se considerou melhor incluir já o futuro na maqueta.

Em todo o restante espaço do museu, há elementos sobre a história de Xangai, sobre teorias urbanísticas, sobre planos antigos que não chegaram a ser levados à prática. O andar subterrâneo do museu é constituído por ruas, praças e casas réplicas em dimensão real da Xangai dos anos de 1930. Há lojas e cafés abertos nessas ruas, por onde se pode caminhar, e que se prolongam para fora do perímetro do museu, ligando-se com os subterrâneos do metro, e mais à frente com as ruas verdadeiras da cidade, numa transição que vai avançando no tempo e na arquitectura. Ou seja: as réplicas das ruas antigas tornaram-se parte da cidade moderna, emprestando-lhe sentido e legitimidade.O boom urbano da China tem 30 anos. As reformas económicas dos anos 80 levaram, com a multiplicação da iniciativa privada, a um aumento de produção e riqueza nos campos, que fez crescer as cidades.

A fase seguinte foi o desenvolvimento das indústrias, com as criação de Zonas Económicas Especiais, que acabaria por levar a um êxodo imenso de populações das zonas rurais para as urbanas. Em pouco mais de 20 anos, mais de 250 milhões de pessoas mudaram-se para as cidades, no maior movimento migratório jamais registado na história humana.De país tradicionalmente rural, até ao final do século XX, a China está a transformar-se numa sociedade urbana. Aproximadamente metade da população (650 milhões de pessoas) já vive nas cidades. Mais do que isso: a China quer transformar-se numa sociedade urbana. Aqui, viver nas cidades é símbolo de desenvolvimento, de emancipação. Apesar dos imensos problemas, desigualdades e injustiças, o êxodo para as cidades representa a grande libertação.

Em Xangai vivem hoje mais de 24 milhões de pessoas, em Pequim 19 milhões, 16 milhões em Guangzhou, 14 milhões em Shenzhen, outro tanto em Shengdu, 12 milhões em Tianjin, 11 milhões em Harbin, 10 milhões em Wuhan. Mais de 100 cidades têm mais de um milhão de habitantes. E o crescimento continua. Prevê-se que mais 400 milhões possam entrar nas cidades até 2025. E ninguém vai fazer nada para o impedir. Pelo contrário. O Governo quer que isso aconteça. As pessoas querem que isso aconteça. O que é preciso é preparar as cidades para a chegada dos novos milhões. Com as suas famílias, os seus telemóveis e os seus carros. As cidades chinesas já são as mais poluídas do mundo, mas prevê-se a entrada de mais uns milhões de automóveis nos próximos anos. Pois há que abrir avenidas, criar parques de estacionamento para os receber.Na China, as cidades são a grande euforia colectiva, o grande triunfo. São o futuro. Não está na moda viver no campo, morar perto do emprego, andar de bicicleta ou reencontrar a paz e a autenticidade das pequenas comunidades.

Não é romântico falar de grilos e passarinhos, ninguém quer cultivar uma horta ou respirar ar puro. O que está na ordem do dia é a cidade, a confusão, o barulho, a fumarada.Na China de hoje, a cidade não é um mal necessário: é um ideal. Só uma coisa está errada com elas: são ainda demasiado pequenas. Deveriam crescer mais e vão crescer mais. Xangai, por exemplo, espera a entrada de mais cinco milhões de pessoas nos próximos cinco anos, ou menos. Por isso está a construir habitação para elas. E também edifícios para elas trabalharem. A rapidez do crescimento é tal que não se compadece com os ritmos convencionais de construção. Novos métodos estão a ser desenvolvidos por construtoras, baseados na montagem por módulos, previamente construídos em fábricas. Um hotel de 20 andares já foi construído em 15 dias e a mesma empresa propõe-se erguer um arranha-céus de 220 andares, que será o mais alto do mundo, em apenas 90 dias, na cidade de Changsha, no Sul do país.As cidades crescem ao ritmo e de acordo com as previsões das necessidades, porque na China tudo é planeado. Num país de economia livre, é difícil fazer cumprir planos e regras urbanísticas. Na China, pode conceber-se uma cidade e depois construí-la.Lio Bo é o director do Centro de Planeamento da cidade de Xangai. Faz parte de uma equipa que estuda as tendências e a evolução e planeia a construção na cidade. Isso parece-lhe natural. Nem vê como poderia ser de outra forma.

Na sua imensidão e aparente caos, Xangai sempre foi planeada. “Os primeiros planos da cidade datam das décadas de 1920 e 1930. Em 1949, depois da revolução, cria-se o terceiro grande plano urbanístico para Xangai.”

Há alturas, porém, em que o desenvolvimento é muito rápido e ultrapassa o próprio plano. É então necessário fazer ajustamentos. Agora, com o crescimento da economia privada, não é tão fácil fazer cumprir os planos, admite Liu. “Mas o Estado continua a ter as decisões importantes. A propriedade dos terrenos e dos edifícios ainda não é completamente privada. Pertence ao Estado. Os privados têm apenas direito ao seu usufruto. Segundo a última reforma, as pessoas têm direito à propriedade durante 70 anos. Depois não se sabe o que acontecerá. Ainda não passaram 70 anos desde a reforma.”

Na zona de Pudong, na margem esquerda do rio, onde há 20 anos apenas havia quintas e florestas, foram construídos em pouco tempo dezenas de arranha-céus, para albergarem empresas, hotéis, centros comerciais, centros financeiros. As expropriações dos terrenos foram feitas à força, sem indemnizações razoáveis, o que levou a um movimento de protestos e petições junto do Governo central. Os terrenos foram considerados propriedade do povo, necessários ao desenvolvimento da cidade, pelo que puderam ser confiscados sem restrições.

Os novos edifícios formam o que hoje é o famoso em todo o mundo skyline de Xangai. As imagens que surgem nos folhetos turísticos e nos postais ilustrados são as fotografias tiradas das esplanadas do outro lado do rio, na zona chamada Bund. É nesta área da cidade que se situam os edifícios monumentais históricos, do período colonial de Xangai. Foram construídos quando, após a Guerra do Ópio, que os chineses consideram uma das maiores humilhações da sua História, a cidade foi dividida em concessões entregues às várias potências ocidentais.

Agora, os novos arranha-céus de Pudong foram construídos segundo um alinhamento que permitisse vê-los todos, do outro lado do rio. Segundo o planeamento dos líderes da cidade, foram construídos assim como uma bofetada, de propósito para formarem aquele skyline, observável da Bund, o coração da Xangai colonial.No meio dos edifícios novos, onde há sempre mais um em construção, circulam excursões de turistas chineses, vindos de zonas rurais ou de cidades mais pequenas. Fotografam e filmam os arranha-céus, como se fossem monumentos, fazem piqueniques nas esplanadas, junto às passagens e viadutos. O movimento de turistas é tão intenso que há fotógrafos profissionais com bancas nas avenidas, para fazerem o retrato dos excursionistas com os arranha-céus em fundo, por 15 yuan.

Olhando em redor, do alto de uma destas passagens para peões, com escadas rolantes e miradouros, a paisagem é de facto impressionante, com os arranha-céus, o rio, os barcos, a cidade a perder de vista. Em qualquer direcção para onde se olhe há edifícios e construções que parecem fazer sentido, que foram planeadas, imaginadas por seres humanos. Para qualquer direcção em que se olhe há uma sensação de conforto. É a cidade. A maior cidade do mundo. Uma sensação de nos sentirmos em casa.Mas se em Xangai a dinâmica histórica da cidade não permite o planeamento total e absoluto, em comunidades como Shenzhen é possível pôr em prática os sonhos mais ousados.

Há 30 anos, Shenzhen era uma aldeia. Desde as reformas de Deng Xiaoping, cresceu a um ritmo alucinante, até aos 14 milhões de habitantes que tem hoje. Tudo na cidade é novo, planeou-se e construiu-se a partir do zero.Numa das placas do museu da cidade de Shenzhen conta-se a história da construção: “A Comissão Militar central instalou 20 engenheiros civis na cidade, para apoiar a construção da Zona Económica Especial de Shenzhen. Trabalhadores de todo o país vieram para construir a cidade. Durante vários anos de trabalho árduo, a infra-estrutura urbana começou a ganhar forma. Shenzhen foi baptizada como ‘A cidade que nasceu de um dia para o outro’. Foi criada a expressão ‘velocidade Shenzhen’, que é bem conhecida em todo o país.”

Como não havia ali nada, a cidade foi concebida de acordo com um ideal, uma utopia. Há zonas residenciais, zonas comerciais, zonas de cultura e lazer. Há passagens aéreas para peões, sobre as avenidas, elevadores, espaços para dança ou prática de Tai Chi. Os arranha-céus ligam-se uns aos outros, há passagens para os centros comerciais e para o metro. Tudo foi concebido em grande, imaginando um futuro radioso. Tudo foi pensado para cidadãos ricos, cultos e felizes.

Certos edifícios parecem sobredimensionados, mas isso deve-se sem dúvida ao seu carácter de vanguarda. Estão à frente do tempo. As instalações do Centro Cívico, por exemplo, com os seus toldos infinitos em rendilhado de aço, as suas galerias colossais, numa cadeia de edifícios a perder de vista… estão vazias. Não há ninguém em todo o espaço, visitando os museus ou organizando e assistindo a conferências e espectáculos. Tudo parece estar à espera de um futuro, que ainda não começou. Os centros comerciais do centro da cidade, como aliás de todas as outras que visitei na China, estão ocupados com as lojas mais caras e exclusivas da indústria ocidental do luxo. Entra-se e ergue-se em frente a Cartier, do lado direito está a Hermés, do esquerdo a Louis Vuitton, Mont Blanc em cima, Dior e Channel em baixo. Nestas lojas, os preços são duas ou três vezes mais altos do que noutras equivalentes de Paris ou Nova Iorque. Preços a que obviamente a nova classemédiachinesa não tem acesso.

Por vezes, o fausto exagerado de certas zonas das cidades faz lembrar os países do Golfo Pérsico. O desperdício, o esbanjamento, a ostentação que no Dubai ou Qatar se devem aos proventos desmesurados do petróleo, emanam aqui da riqueza estrambólica da produção industrial, da força da natureza que é a mão-de-obra desses milhões de trabalhadores imigrados dos campos.Em Chongqing, um município de 32 milhões de habitantes no centro da China, o centro da cidade é ocupado por arranha-céus e cada um deles tem as fachadas cobertas por anúncios publicitários.

Em cada um dos edifícios há um centro comercial só com lojas luxuosas. Na rua, à volta dos prédios, milhares de pessoas circulam, comem espetadas de carne compradas aos vendedores ambulantes ou assistem a espectáculos de rua. Ninguém entra nos centros comerciais, que estão vazios. São espaços interiores imensos, forrados a materiais sofisticados, cheios de lojas com empregados bem vestidos e ar compenetrado, mas sem ninguém, como grutas de vácuo.

Chongqing também cresceu a partir do nada. Era uma pequena cidade portuária nas margens do rio Yangtze, cercada de comunidades rurais muito pobres. Mas o Governo elegeu-a como capital do desenvolvimento da China interior. A construção da barragem das Three Gorges, a maior do mundo, destinou-se a abastecer energeticamente o novo centro urbano. Novas indústrias foram levadas para a região. É hoje o lugar no mundo onde é construída a maior parte dos motores de motociclos. A cidade, eternamente envolvida numa névoa cinzenta e densa, parece uma Nova Iorque construída de um dia para o outro no meio de uma montanha. Os modernos arranha-céus são circundados por um anel de edifícios degradados, esburacados, meio-destruídos. Ruas estreitas estão cheias de oficinas sujas e negras, restaurantes gordurosos, baratos, mercados de vegetais e carne cheia de moscas. É como se duas cidades, de dois mundos diferentes, se tivessem encaixado à força uma na outra.

Em Pequim, o novo conceito de cidade mescla-se nas ruas da cidade antiga. Surgem bairros inteiros de arquitectura futurista enxertados entre os conjuntos monumentais de tipo soviético. Pequim é desde sempre uma cidade grande. Foi durante séculos a maior cidade do planeta. A sua vocação seria dar o exemplo a seguir, como modelo, no centro do império, mas acaba por sucumbir à nova dinâmica do urbanismo comercial, mercantil.

Na China, a ideia de cidade está ligada à de utopia, como na Europa acontecia na Renascença. No entanto, nessas imensas metrópoles de sonho, nunca se vê o céu. A poluição das fábricas e do trânsito automóvel forma uma carapaça cinzenta, espessa e asfixiante sobre as grandes comunidades da nova China.

Aqueles que foram os grandes erros urbanísticos do Ocidente parecem estar a ser repetidos na China, com consciência e orgulho. As cidades, mesmo as construídas quase de raiz, são concebidas para os automóveis, não para as pessoas. Não se podia evitar isto? Não se podia ter aprendido com os erros das cidades mais antigas?Liu Bo acha que não. “Na Europa e nos EUA as pessoas têm carros há cem anos. Os chineses só têm há 20. As pessoas estão felizes por terem um carro, e querem trazê-lo para a cidade. Não as podemos impedir, para já.”

Para o futuro, diz Liu, estão previstas medidas, como a limitação da entrada de carros na cidade, através de um controlo das matrículas, a divulgação dos carros eléctricos. Em Xangai já há centenas de milhares de motos eléctricas, e noutras cidades estão previstos autocarros e comboios eléctricos para transportarem a maioria dos cidadãos aos empregos. Até ao ano de 2015, o Governo chinês prevê a introdução de 500 mil veículos eléctricos nas estradas do país. A maioria deles será usada pelas empresas de táxis.Em Shenzhen, está previsto que 24 mil veículos eléctricos comecem a circular nas ruas da cidade, abastecidos por 12.750 postos de abastecimento.

Também em Shenzhen vai ser introduzida uma espécie de comboio gigante, cujos carris seguem de ambos os lados das auto-estradas. O veículo, desenvolvido pela Shenzhen Huashi Future Parking Equipment, apoia cada série de rodas em cada margem, e circula imperturbável sobre o trânsito de automóveis. Terá uma capacidade, em cada carruagem, para 1200 passageiros. Segundo a empresa que o concebeu, vai reduzir o tráfego nas horas de ponta em 30% e ficará 90% mais barato do que construir um novo túnel de metro. Além disso, o novo veículo vai gerar electricidade, através de grandes painéis solares instalados no tejadilho.

Entre as várias cidades, circulam já, na China, os comboios mais rápidos do mundo. Mas as linhas estão a ser preparadas para receber outros ainda mais rápidos, com velocidades próximas dos 500 km/h. De Pequim a Xangai, poderá fazer-se a viagem em menos de três horas. Alguns comboios rápidos poderão no futuro circular de uma grande cidade a outra sem ter de parar nas estações intermédias, porque, através de um sistema de plataformas deslizantes que se agarram ao tejadilho do comboio, os passageiros poderão entrar e sair da carruagem com o comboio em andamento.

As ligações aéreas entre as várias cidades também estão a desenvolver-se a grande velocidade. Entre 2005 e 2010, foram construídos na China 33 novos aeroportos. Outros 33 foram aumentados ou renovados. Mas nos próximos três anos está previstaa construção de mais 70.O crescimento das cidades implica uma necessidade imensa de novas fontes de energia, novos sistemas de reciclagem de lixo. Nos centros de investigação das cidades chinesas estão ser desenvolvidos novos modelos para centrais nucleares e planeada a construção de gigantescos parques de energia solar. A reciclagem de lixo é objecto de um projecto da empresa Goldenway Bio-tech, de Pequim, que permitirá transformar, por dia, 400 toneladas de detritos em fertilizantes.Toda a investigação, com apoio estatal, está centrada na produção de mais energia e mais eficiência de transportes produzindo menos poluição e menos desperdício.

Mas, para já, é preciso deixar circular os carros. “As pessoas têm necessidade de possuir alguma coisa. De ter o seu próprio carro e usá-lo. O Governo está atento ao problema da poluição e aberto a soluções já experimentadas em países do Ocidente, mais avançados do que nós nestas coisas. Temos planos de sensibilização e informação dos cidadãos para os problemas da poluição e outros problemas urbanos. Porque as pessoas não sabem estas coisas e por isso não colaboram nas soluções. Para nós, a vida moderna é algo ainda muito novo. Temos de aprender. Já fizemos alguns progressos. Em Xangai, por exemplo, os camiões de carga já não entram.”Liu tem a convicção de que através do planeamento todos os problemas se podem resolver. Nunca será demasiado tarde.

Enquanto o Estado tiver todo o poder de decisão e capacidade de aplicar e fazer cumprir as decisões, é como se os problemas não existissem. “Na China, até há poucos anos, as pessoas sobreviviam com muitas dificuldades. Havia fome, séculos de miséria, não havia esperança. Agora, a vida nas cidades representa um novo limiar. Significa a existência de recursos, de segurança, de ajuda, de partilha. É todo um mundo novo que começa. Cidade é sinónimo de desenvolvimento. As pessoas estão felizes por viverem nas cidades. Não querem voltar atrás e todos os problemas serão resolvidos.”

Perante a euforia do discurso, tento contrapor os argumentos clássicos de que uma cidade tem de ser mais do que um aglomerado de pessoas. Que não basta haver avenidas e automóveis para que surja uma existência urbana. Que é preciso saber viver na cidade. Que há uma cultura urbana que se aprende e desenvolve, ao longo dos séculos. Que uma cidade tem de ter qualidade de vida. E vida cultural. Espaços de convívio, de comunhão. De participação. Acrescento ainda que as grandes cidades dão origem a um tipo de vida cheio de solidão. As pessoas vivem juntas no mesmo prédio e não comunicam, não se conhecem, não se interessam umas pelas outras. Viver sozinho no meio da multidão…, continuo, embalado, delirando na crista da onda dos mitos ocidentais. Liu olha-me com genuíno espanto e alguma comiseração. “Solidão na cidade? Nas aldeias é que há solidão. Na cidade, as pessoas estão juntas. Os chineses gostam de estar juntos. Sempre gostaram. Agora, na cidade, podem estar uns com os outros. Encontram-se nos restaurantes e cafés, nas casas de chá, nas lojas, nas ruas. Não vejo onde é que há solidão. Quanto à vida cultural, isso também é planeado. Construímos teatros, cinemas, centros desportivos, escolas, centros culturais comunitários, centros de convívio para os jovens, ou para os mais velhos. Tudo isso pode ser planeado e construído, e as pessoas vão usufruir. Não me parece que as pessoas se sintam sozinhas na cidade. Na aldeia sim, onde há pouca gente”.

 Reportagem publicada na Revista 2 de 4 de de Novembro de 2012, no âmbito do projecto PÚBLICO+

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