Seca histórica compromete abastecimento de água e luz no Brasil

O maior reservatório de água potável de São Paulo está a 5% da sua capacidade, e poderá atingir o zero em meados de Abril. O Rio de Janeiro não está melhor e não há soluções rápidas à vista.

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Instalação artística na represa de Atibainha, parte do sistema da Cantareira, que abastece São Paulo Nacho Doce/Reuters

O Brasil está a viver uma situação de seca sem precedentes, com a escassez de água a deixar os sistemas de abastecimento das maiores cidades do país à beira do colapso, e a fazer disparar o risco de apagões e cortes de energia, uma vez que cerca de 80% da produção brasileira é hidroeléctrica.

A seca já atinge cinco das dez maiores regiões metropolitanas brasileiras – Belo Horizonte, Campinas, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo –, onde vivem cerca de 48 milhões de pessoas, isto é, cerca de um quarto da população do país. Mas segundo os especialistas, o impacto da crise hídrica poderá ser sentido por quase 80 milhões de brasileiros.

O Governo de Dilma Rousseff qualificou a crise da água como “sensível”, reconhecendo que a situação é “muito preocupante”. Conforme assinalou a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, “nunca se viu uma seca tão grande nos últimos 84 anos”: o Governo federal está disponível para apoiar “as medidas emergenciais e de carácter estruturante”, dos estados e dos municípios, que são os detentores da responsabilidade pelo abastecimento das populações, garantiu a governante.

O caso de São Paulo – uma metrópole de 19 milhões de habitantes – é o mais extremo. Há meses que o abastecimento da Grande São Paulo está a ser feito com recurso à exploração do chamado “volume morto” dos reservatórios do sistema Cantareira, isto é, com a água que fica no nível abaixo da estrutura de captação das represas e cuja qualidade não pode ser garantida.

A escassez de água obrigou ao racionamento do abastecimento nas torneiras em vários pontos da região metropolitana e da própria cidade de São Paulo. A população tem reagido entre o pânico e a resignação, passando pela revolta e fúria: por exemplo, depois de 20 dias sem água, um protesto na localidade de Itu, a 100 km de São Paulo, terminou em violência, com os habitantes a pegar fogo a autocarros e a sequestrarem camiões-cisterna.

Apesar de ter desvalorizado os alertas sobre a gravidade da situação em Outubro, durante a campanha eleitoral, garantindo que o sistema estava preparado, o governador Geraldo Alckmin – confortavelmente reeleito para o cargo –, já admite a hipótese de impor um “rodízio de água”, num formato drástico de cinco dias sem água para dois dias com abastecimento, que poderá durar até Abril.

A última vez que esse sistema foi aplicado foi há 15 anos, em resposta ao esvaziamento do sistema Guarapiranga, e afectou a zona Sul e uma parte da zona Oeste da capital, que ficavam sem água por um período de 24 horas a cada três dias. Mas até essa medida pode ser insuficiente. Esta sexta-feira, o maior reservatório de água potável de São Paulo tinha apenas 5% da sua capacidade, e de acordo com as projecções, poderá atingir o zero em meados de Abril.

Em busca de alternativas
O governo paulista convocou as empresas especializadas em matérias hídricas na semana que passou para apresentarem propostas “criativas” de curto prazo para atenuar a crise, nomeadamente para o tratamento da água da Billings, a maior reserva de São Paulo, mas cuja exploração está comprometida. A água é imprópria para consumo humano não só por causa do nível de poluição, como também pela engenharia complexa que envolve a sua distribuição pela área metropolitana. Como escreveu o jornal Folha de São Paulo, o governador garantiu que “não faltará dinheiro para projectos com soluções imediatas”.

O uso do volume morto também já se tornou uma realidade no Rio de Janeiro: como escrevia a agência Brasil na semana passada, “quem depende do reservatório do Paraibuna, 90% formado por moradores do Rio, também beberá águas nunca antes exploradas pelo abastecimento”. O jornal Globo escreveu que o reservatório, criado em 1978, contém actualmente dois mil milhões de metros cúbicos de água, que é usada tanto para o consumo como para a produção hidroeléctrica – esse valor garante, no pior dos cenários, que os cariocas têm água até Julho.

Em Minas Gerais, a Companhia de Abastecimento Copasa já veio alertar para o risco do corte do abastecimento se não forem adoptadas medidas urgentes para uma significativa redução do consumo, uma vez que a capacidade dos reservatórios já baixou para o nível crítico. O governador Fernando Pimentel – um dos vários dirigentes estaduais que na última quarta-feira estiveram em Brasília para discutir a crise com o Governo –, estimou que, “se não chover, se o consumo não cair e a vazão não aumentar, e se não conseguirmos mais captação, em três meses vamos ter que racionar severamente”.

Para evitar esse cenário, o governo mineiro definiu metas de redução de 30% do consumo de água na região metropolitana de Belo Horizonte, e anunciou a criação de uma sobretaxa para quem ultrapassar os gastos registados em 2014. Fernando Pimentel também deu luz verde a uma obra de transposição do rio Paraopeba para o rio Manso, que é o curso responsável pelo abastecimento da capital.

Vários outros estados do país viram-se obrigados a adoptar medidas de emergência para garantir o abastecimento. “A região Sudeste pede socorro aos céus. É o que resta, diante do cenário no qual tudo o que os governantes vêm fazendo é pedir economia, aplicar multas e correr atrás de obras que já deveriam estar prontas”, escreve o Huffington Post brasileiro.

Sem solução rápida
Como avisam os especialistas, nenhuma dança das chuvas conseguirá resolver magicamente a crise hídrica da noite para o dia: no Rio de Janeiro, por exemplo, seriam precisas chuvas acima da média histórica daqui até 2020 para recuperar os reservatórios, estimou o secretário-geral do Comité de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul, Tarcísio Souza e Silva, ao jornal Extra.

A crise não é um problema pontual provocado por uma baixa pluviométrica, mas antes uma acumulação nefasta de factores que resultam na escassez de água, da seca ao desmatamento, da poluição dos rios à falta de tratamento de efluentes e esgotos, e ao elevadíssimo índice de consumo e desperdício de água, tanto no sector industrial, como na rede pública. “Continuamos a tratar os mananciais como a extensão das nossas descargas, com o despejo diário de toneladas de esgotos, e a considerar as grandes bacias hidrográficas como a ponta das tomadas de energia eléctrica. Essa realidade, agravada pela falta de planeamento integrado e estratégico, coloca-nos mais uma vez diante da tragédia anunciada do desabastecimento de água e do apagão eléctrico”, lamenta a coordenadora da rede de Águas da fundação SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro.

Porque não é só do fecho das torneiras que se fala quando se fala em crise hídrica no Brasil: no início do ano, o potencial catastrófico do problema da escassez de água tornou-se evidente quando um apagão eléctrico deixou 11 estados sem abastecimento de luz. O risco de falta de água reflecte-se, como num espelho, no risco de falta de energia eléctrica. O país já entrou no nível de escassez crítica de produção do sistema eléctrico, que segundo o Anuário Estatístico de Energia Eléctrica, produz quase tanto quanto consome (a produção é de 531 Terawatts por hora e o consumo de 481 Terawatts por hora).

Com o sistema próximo do limite, o Operador Nacional do Sistema (ONS), organismo federal que controla o fornecimento de energia eléctrica no país, exigiu há dez dias que as concessionárias de Brasília e dez estados iniciassem um racionamento, cortando parte da energia fornecida a grandes consumidores por um período de 50 minutos. Novamente, essa não é uma medida nova: entre 2001 e 2002 vigorou um regime de racionamento de energia, de forma a evitar a repetição dos apagões que deixaram as maiores cidades às escuras.

No jornal Folha de São Paulo, o jogo político do empurra a propósito da “crise da água” mereceu um violento editorial, intitulado “Omissão criminosa”, que censurava “anos de inépcia, negligência e demagogia”, agravados por “equívocos e por desfaçatez exagerada até para períodos eleitorais”.

“A falta de água revela não apenas os solos esturricados das represas, mas também uma administração pública decrépita, ineficaz, imprevidente e autoritária”, frisava o diário paulistano, que não isentou ninguém de responsabilidades – da esquerda à direita, do nível municipal ao estadual ao federal … “Os governos tucanos [do Partido da Social-Democracia Brasileira], há duas décadas no poder estadual, e petistas [do Partido dos Trabalhadores], há 12 anos na presidência, não podem atribuir a ninguém a herança maldita de sua própria incúria.”

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