Russell Brand, o neoliberalismo e o imobilismo

Nunca tinha ligado a Russell Brand. Sabia apenas que era um comediante inglês de grande sucesso. Na sexta-feira, amigos ingleses das redes sociais comentavam uma entrevista dada por Russell a Jeremy Paxman na BBC e foi aí que despertei para a celebridade. Fui investigar.

E o que disse ele? Em resumo: o sistema capitalista neoliberal, baseado na ideia de que os recursos e o crescimento económico são ilimitados, criava cada vez maiores desigualdades, com uma redistribuição da riqueza ineficaz, ao mesmo tempo que a política se havia transformado em mera máquina administrativa.

E acabava a sugerir, não apenas uma transformação política e económica, mas também a emergência de uma nova consciência colectiva. Numa frase: este sistema está moribundo. É necessário ousarmos e projectarmos outro.

No fim de contas, nada que não tenha ouvido nos últimos anos da boca dos mais diversos intelectuais (de Manuel Castells a Bauman, de Zizek a Badiou) e de um ou outro político mais desalinhado, e de alguns rostos de movimentos populares, mas que nunca ouvira da boca de uma celebridade de alcance global como é Russell.

E muito menos algo que se oiça da boca dos políticos, economistas ou comentaristas do costume, todos eles optando por discutir a moralidade deste ou daquele político, desta ou daquela medida, falando de ajustamentos ou de pequenas reparações, nenhum ousando discorrer sobre mudanças fundamentais.

Resultado dessa entrevista? Tornou-se viral. Dias depois, milhões em todo o mundo, principalmente os que nunca haviam sido submetidos ao tipo de posicionamento que ele defendera, reviram-se no que havia afirmado. Diga-se, como acontece também quase sempre nestes casos, com os habituais exageros de divinização da sua figura.

Mas o mais interessante nesta história não é isso. O mais relevante está a acontecer agora e é o contra-ataque desencadeado pelos media dominantes, desacreditando-o. E é interessante como sintoma da forma como se paralisa qualquer discussão acerca do sistema. Ou seja, podia ser Russell ou outro qualquer do mesmo impacto.

Primeiro passo: desacreditar a pessoa. Diz-se que não tem autoridade moral, nem credibilidade, nem é íntegro, nem provém de uma tradição de pensamento que lhe permita dizer aquilo. Vai-se buscar coisas ao passado e até se satiriza a forma como se veste e se comporta em público. Ou seja, retira-se a atenção do fundamental.

A condição de celebridade multimilionária não lhe confere autenticidade para produzir opinião. O mais revelador é algumas destas visões terem origem nalguma esquerda que não lhe reconhece autoridade, a ele, de origens humildes que se tornou célebre. Para esses, presume-se, os necessitados devem manter-se pobres, na obscuridade e na impotência; de contrário, não serão autênticos.

Segundo passo: isolar um elemento do que foi dito para desacreditar o todo. Na entrevista, Russell disse provocatoriamente que não votava porque isso contribuía para a reprodução do sistema. Ou seja, o não votar, aqui, é o contrário de apatia. É não votar, racionalmente, para devolver ao sistema e aos políticos que os inertes são eles, por não resolverem os problemas e por não assumirem que o sistema político tem de ser reparado.

Resultado? Foi interpretado literalmente, o que é revelador das razões por que o sistema não se renova. É incapaz de se renovar porque não estamos preparados para pensar de forma diferente. Resultado: o “não votar” de Russell foi aproveitado para artigos paternalistas sobre as conquistas democráticas realizadas através do voto, como se essa fosse, na substância, a questão. A questão não é o voto. É a política reduzida à tecnocracia. É a falta de representatividade democrática. É o esgotamento do sistema político actual, do qual, sim, faz parte o voto.

Terceiro passo: desacreditar as críticas ao sistema se não forem acompanhadas por uma solução de bolso para um sistema alternativo viável. Esta é a linha de argumentação mais ardilosa. Trata-se de menorizar as críticas ao sistema, esvaziando-as, com o argumento de que se não vêm acompanhadas de alternativas concretas, capazes de serem postas em prática prontamente, então são quimeras, e nem vale a pena iniciar sequer a discussão.

É o argumento utilizado desde a queda do muro de Berlim, quando nos disseram que não havia alternativas ao neoliberalismo, porque era o menos mau, assustando-nos com o papão das grandes utopias do século XX (fascismo e comunismo) que haviam fracassado. Sim, ok. 

O problema é que a grande utopia das últimas décadas — o modelo neoliberal assente na ideia de que o crescimento económico é infinito — também fracassa e esgota-se. Mais ainda: não terá sido precisamente o consenso à volta do capitalismo, traduzido no medo de imaginarmos alternativas, o que nos trouxe até aqui?

A inércia da discussão cria-se assim, acusando o outro de não ter alternativas, ou destas serem complexas, logo dificilmente concretizáveis, como se a única solução fosse aceitar o paradigma vigente, contra todas as evidências. Ou seja, os guardiões do sistema exigem aos críticos deste aquilo que eles próprios não conseguem produzir.

Talvez seja então a altura de alguém dizer aos críticos de Russell que sonhadores são eles. Sonham que medidas de austeridade localizadas solucionem problemas estruturais de interdependência económica global. São eles que impedem o formular das perguntas certas para irmos de encontro às respostas, limitando-se a agir, em rodopio, sem saírem do sítio. Querem maior apatia?

Na última semana, Russell teve o mérito de galvanizar e excitar a curiosidade das pessoas, colocando-as a discutir. Não tem uma solução consistente no sentido da afirmação de um novo modelo político e económico?

Talvez. Mas o que temos hoje para gerir são hipóteses e aproximações. Agora, existe uma coisa que sabemos: o que Russell diz faz parte da solução, não constituiu o problema. O problema é o contínuo bloqueio do debate, no momento em que ele pode convergir na direcção de todos, para que todos possam participar dele, projectando alternativas.

E isso não acontece porque a ideologia dominante diz taxativamente a Russell, e a todos nós, que mais vale deixarmo-nos de fantasias, continuando a impor-nos a sua cruel fantasia. 

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