Os novos portugueses em Caracas, cidade de caos, simpatia e violência

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Nas prateleiras do supermercado pode faltar leite, açúcar, champô ou qualquer produto importado Carlos Garcia Rawlins/Reuters

Trabalham em empresas portuguesas com negócios na Venezuela. Aprendem a viver com o cheiro a gasolina, o trânsito caótico, as falhas nas prateleiras dos supermercados, a insegurança.

Carlos Alves sentiu a diferença mal aterrou no Aeroporto Simón Bolívar. Não era só o bafo quente de Maiqueía, que se cola ao corpo, tornando-o luzidio. Era "a desorganização" no controlo de bagagens, o trânsito até Caracas, o trânsito dentro de Caracas. Olhava em seu redor e vinha-lhe à cabeça a palavra "caos".

Cheira a gasolina. Na cidade, circulam um milhão e meio de carros, com uma ocupação média de 1,2 pessoas. Pode demorar-se duas horas para percorrer cinco quilómetros - três, se estiver a chover. Ao entardecer já ninguém liga à cor dos semáforos. A nenhuma hora lhe parece valer de muito optar por uma passadeira.

A rede viária não era renovada há décadas. Nos últimos meses, apressaram-se as obras do novo sistema de transporte colectivo Buscaracas, que agora mesmo começou a operar, e do Metrocable Mariche, que deverá estar a funcionar em Novembro.

Avança a linha cinco do metro. E a Teixeira Duarte está a trabalhar no prolongamento da Avenida Boyacá, mais conhecida por Cota Mil, que liga o Leste ao centro da cidade.

O cônsul de Portugal, José Luís Ferreira, não sabe quantos portugueses chegaram com o Acordo Complementar Económico e Energético assinado entre a Venezuela e Portugal em 2008. A experiência diz-lhe que serão dezenas, a juntar aos que a banca já cá tinha e que reforçou.

A Teixeira Duarte é quem mais gente tem trazido. Além do contrato de cerca de 920 milhões de euros que contempla o prolongamento da Cota Mil até à auto-estrada de Caracas a La Guaira, está a trabalhar na ampliação e modernização do Porto de La Guaira, um negócio que envolve 275 milhões de euros.

A vontade de ter uma experiência fora impulsionou Carlos. Nunca estivera num país onde as pessoas param numa bomba de gasolina, entregam a chave sem dizer quantos litros querem. Com o que se paga por um litro de gasolina em Portugal, atesta-se um depósito quatro vezes. É a gasolina mais barata do mundo: 0,02 dólares. Ainda menos do que o Irão (0,10), a Líbia (0,17) ou o Qatar (0,19), segundo o Banco Mundial.

A afabilidade surpreende o gestor de clientes, de 31 anos, há um ano vindo de Vale de Cambra, Aveiro. Em Portugal, as pessoas entram num elevador e olham para o chão, para os lados, para o tecto, mantêm silêncio. Aqui, as pessoas olham umas para as outras, sorriem, desejam bom dia, boa tarde ou boa noite.

Entra-se numa padaria ou numa sapataria e quem está ao balcão cumprimenta: "Olá, meu amor", "minha vida", "meu céu". Só que "por qualquer coisa se saca uma pistola". Caracas é uma das mais perigosas cidades do mundo. E Carlos tem medo. "Qualquer um tem medo, ainda mais em período eleitoral", diz, a poucos dias das presidenciais de domingo.

Voltar a um mundo novo

Nancy Santos, o rosto da Efacec Energia - que assinou um contrato de fornecimento de transformadores de potência e de subestações móveis -, também tem medo. Licenciada em Gestão de Marketing, mestre em Economia e Gestão Internacional, depressa assimilou uma série de estratégias de defesa. Se percebe que alguém está a andar atrás dela, pára, faz de conta que tem qualquer coisa no sapato, deixa passar.

Nasceu em Maracaibo há 30 anos. Tinha seis quando os pais voltaram a Portugal. Só se lembrava da casa da família e dos doberman que a mãe soltava à noite, para afastar os delinquentes. Aterrou ansiosa. As notícias, que iam daqui, inspiravam cuidado. Espantou-se ao entrar em Caracas. "Era de noite, via as luzinhas todas das favelas, que aqui chamam "barrios", mas só de manhã percebi a dimensão." Estava num mundo que não era o seu, apesar de aqui ter nascido.

Não se cruza com os portugueses que desembarcaram na Venezuela entre 1948 e 1983 com uma mão à frente e outra atrás. Fez amigos entre os que trabalham na embaixada ou em empresas, como a Teixeira Duarte, o BPI, o Grupo Lena ou a VisaBeira. No seu prédio vivem três. Amiúde, juntam-se para jantar. "Já tenho um grupo razoável de amigos, o que faz com que não custe tanto."

Talvez o pai se orgulhasse de a saber aqui. A mãe preocupa-se, embora apoie esta vontade de descobrir a origem, de se desafiar. Trabalha, sobretudo. "O computador é o meu melhor amigo." Sai do escritório, vai para o apartamento, que fica a uns minutos, numa das melhores zonas da cidade, e torna a ligá-lo para continuar a trabalhar ou falar com familiares, namorado, amigos. "Bebo um copo de leite e deito-me."

Muito pelo controlo de câmbio (que faz com que o bolívar tenha um valor oficial e um real) e pelo controlo de preços, nem sempre encontra o leite que quer. Nas prateleiras do supermercado pode faltar leite, açúcar, champô ou qualquer produto importado. Esta semana, há racionamento de farinha de milho, massa, leite em pó, café, óleo vegetal e margarina. Um destes dias, na Central Madeirense, por exemplo, só se podia comprar dois litros de óleo vegetal, duas embalagens de leite em pó, dois quilos de açúcar, e não havia farinha.

Vive sozinha, o racionamento não a perturba. Nunca lhe aconteceu querer uma coisa e não encontrar. Acontece-lhe é não encontrar a marca que procura. Há pouca diversidade nas prateleiras dos supermercados. Pode passar-se por cinco e encontrar uma única marca de pasta dentífrica. Quando chegou, em Janeiro, viu leite Mimosa. Nunca mais. Vai experimentando o que aparece. Já deitou pacotes ao lixo. "Não conseguia beber." De três em três meses vai ao Porto, recuperar energias. Regressa pronta para continuar a aprender Caracas. Com todo o gosto.

As reportagens na Venezuela são financiadas no âmbito do projecto Público Mais<_notc3ad_cia corrigida="" _c3a0_s="" 14h26="" de="">

: noi oitavo parágrafo, corrigido o valor do litro de gasolina, que é de 0,02 dólares e não 0,2 cêntimos de dólares.

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