O sonho americano dos Bin Laden

Um emigrante temerário ajudou a construir um país. Deixou uma fortuna sem fim e uma descendência imensa. Uma família árabe e global, que se integrou no Ocidente, até que um dos seus membros a engoliu. Steve Coll partiu dos Bin Laden para chegar a Osama e não há outro livro assim sobre ele.

Esta é a história de um país chamado Arábia Saudita, que não seria o mesmo sem outro chamado Estados Unidos da América. O título é "Os Bin Ladens", mas é o subtítulo que realmente nos prepara: "Uma família árabe no século americano." Esta é a história dos Bin Laden, de todos. Dos mais conhecidos e daqueles que nunca descobriríamos sem a ler.

Passa-se em Riad e Jidá e Meca, mas também em Munique, Londres, Beirute.

Leva-nos a Peshawar e a Kandahar, mas não tanto como a Nova Iorque e Orlando. Começa no Iémen, num sítio mágico chamado Hadhramaut.

Deserto, oásis, penhascos e construções de alturas e localizações impossíveis.

Milagres. Sobre um determinado local da região que se estende para leste no Iémen até Omã, escreve o autor: "Segundo uma lenda local, uma raça de gigantes destruía as pedras do abismo até Deus se ter ofendido com a sua arrogância e a ter destruído através de uma tempestade de areia. Isto pode explicar a espantosa arquitectura: amontoados de encontro às paredes de pedra, erguem-se os gigantes arranha-céus das povoações acasteladas, cada uma um baluarte vedado e vertical contra as suas vizinhas." É num local assim que começa a saga. Como tantas, repleta de acasos.

Um boi, uma melancia. Por exemplo: Awadh bin Laden, avô de Osama, pediu um empréstimo para comprar um boi e poder lavrar a sua terra depois de uma tempestade, mas o boi morreu subitamente, e o credor, Bilawal, exigiu-lhe a ultrajante quantia de 40 riyals de prata. Sem ter como pagar, Awadh ofereceu parte das suas terras, mas uma seca atingiu a região e nada cresceu. Ameaçado de morte, só lhe restou fugir para um planalto mais elevado e recomeçar: Wadi Doan, o tal que deve a sua configuração a Deus se ter sentido ofendido.

Foi a primeira viagem. Muitos hadhramis partiam, descendo para a costa e, depois, em barcos de madeira, Mar Vermelho acima. Alguns para a Etiópia. Muitos até Jidá, a porta de entrada na Arábia para os peregrinos muçulmanos a caminho de Meca.

Mohamed, filho mais velho de Awadh, ficou sem pai e fez as duas viagens.

Terá nascido em 1908 e iniciado a primeira aos 12 anos, com o irmão, Abdullah. A Jidá chegou com 14 ou 15 anos: no relato de Abdullah, velejaram à volta da Península, subiram até Jizan, 60 quilómetros a sul de Jidá, e a seguir andaram; perdidos no deserto, quase morreram à fome, mas, depois de uma violenta tempestade, descobriram uma quinta e nela uma melancia que comeram, sentindo-se a renascer.

Jidá, por fim. "Talvez somente um adolescente que tivesse conhecido as privações de Hadhramaut conseguisse encarar este porto varrido pelas doenças e sem uma única rua pavimentada, como um lugar cheio de oportunidades", escreve Steve Coll. Mas Mohamed vira em Doan "os orgulhosos arranha-céus de lama" construídos por quem tinha "feito fortuna em todo o tipo de locais improváveis" e tinha "dentro de si algo que o impulsionava a procurar a sua fortuna".

O país dos Saud

Poucos anos antes de Mohamed nascer, era Abdulaziz Ibn Saud que saía do Kuwait "com uma espada na mão, alguns camelos e um pequeno grupo de seguidores, para reivindicar em nome da sua família a cidade de Riad, uma povoação com muralhas de lama no planalto da Arábia central, bem como o insignificante reino que ela governava". Cinquenta e duas batalhas depois, cicatrizes no corpo e uma perna coxa, em 1932, anunciava o nascimento do novo reino. E depressa assinava contratos para a exploração de petróleo. Formou-se um consórcio, a Aramco (Arabian American Oil Company), que empregou Mohamed e o rapaz que quando chegara a Jidá já era cego de um olho, subiu em menos de três anos de assentador de tijolos a capataz de várias equipas de assentadores de tijolos. E logo decidiu começar o seu negócio.

"Mudam-se os nomes e os locais, e este incrível livro começa à maneira de uma saga familiar americana. Um jovem sem instrução chega a uma terra de oportunidades e, através da ambição, do talento e do trabalho árduo, alcança riqueza e poderes imensos", escreveu o diário "The Washington Post" sobre "Os Bin Ladens" (Tinta da China).

Os hadhramis, como Mohamed, têm grandes feitos inscritos no seu passado.

Um deles foi terem ajudado a construir a Arábia Saudita e Mohamed foi mais longe que todos. A Casa de Saud tinha dinheiro imenso do petróleo, mas um país de desertos. Mohamed construiu centrais eléctricas, palácios para os príncipes e estradas e aeroportos para o progresso, renovou Mec a, Medina e Jerusalém, ganhando a confiança da família real por nunca dizer não. "Sim, Majestade, pode ser feito." Os Saud dependeram sempre de duas alianças: uma interna, com os líderes religiosos, outra no exterior, desde que Abdulaziz e Roosevelt acordaram trocar protecção por petróleo.

Religião, pertença tribal e modernidade ocidental são os valores nos quais se baseia o país, desde a fundação.

Mohamed, um estrangeiro, cultivou com sabedoria as várias partes desta identidade de equilíbrio perene.

O filho de Mohamed

É uma grande história, a do hadhrami que morreu com apenas 60 anos, deixando um dos grandes impérios de construção do mundo e 54 herdeiros.

Para estes, a impossibilidade de ultrapassar ou até igualar o que o pai alcançara terá sido uma inquietação permanente.

Alguns seguiram as suas pisadas de forma brilhante, conseguindo o impossível e multiplicando a fortuna, mesmo se gastando a igual ritmo com alguns dos luxos a que o pai se entregara e outros que Mohamed nem imaginara.

Mas só um acabaria por se distinguir de forma a ensombrar tudo o que todos os outros alcançaram. Para sempre.

Agora, Mohamed é o pai de Osama.

Mas Osama começou por ser o filho de Mohamed. E foi por isso que Steve Coll escreveu "Os Bin Ladens". "Senti que Osama era descrito como um produto das guerras afegãs e dos movimentos radicais que surgiram depois de 1979, mas que falhávamos em compreendêlo como um produto da modernização e dos conflitos de identidade e riqueza na Arábia Saudita", explicou ao Ípsilon o jornalista da "New Yorker", vencedor do Pulitzer e director do think tank New America Foundation.

Salem queria rock and roll

Quando Mohamed morreu só dois filhos eram maiores. Oficialmente, o tutor das crianças passou a ser o rei.

Na década seguinte, os anos 70, o mais velho, Salem, que o pai enviara para estudar em Londres, estabelecer-se-ia aos poucos como novo chefe da família.

Do pai, herdou a visão e juntou-lhe uma mistura de charme que lhe permitia saltar de um jantar romântico numa cidade europeia para um "majlis" (assembleia onde um rei ou um xeque ouve pedidos de cidadãos ou assina negócios). Como antes saltava da escola interna para os clubes onde ajudou a formar os The Echoes, banda com "algumas pessoas com verdadeiro talento". Salem, sem paciência para estudar música, queria "apenas rock and roll".

Osama, que tinha feito visitas ocasionais às obras do pai em Meca, era uma criança que estudara entre a Arábia Saudita e a Síria, o país da mãe.

Depois da morte do pai, conheceu todos os irmãos e andava por perto enquanto Salem se aproximava da liderança.

Mas a orientação que procurava encontrou-a na nova escola, a Al-Taghr, de Jidá, a única de currículo moderno e onde, como noutras, se empregavam então professores sírios e egípcios, alguns da Irmandade Muçulmana, outros influenciados pelo islamismo político da organização que queria substituir os líderes árabes nacionalistas pela lei do Corão.

Entre as cinco dezenas de Bin Laden dessa geração houve sempre muitas formas de ser crente e muitas soluções para equilibrar o islão ortodoxo saudita e a modernidade. E como com tantos sauditas que começavam a viajar, esse percurso poucas vezes se fez a direito:jovens com hábitos mundanos poderiam mais tarde transformarse quase noutra pessoa.

Entre o Plaza e Meca

Salem não levava a religião muito a sério e fazia parecer fácil ser saudita, um Bin Laden e absorver o mundo.

Nos EUA, para onde "escolheu liderar uma migração familiar", dava festas de aniversário à irmã preferida no Plaza de Nova Iorque, incentivando-a a aprender a voar. Em casa, vestia túnica branca, mas não ia à mesquita nem jejuava no Ramadão. Entre um extremo e o outro, estava sempre atento ao que era novo e os sauditas ainda não tinham.Trinta anos depois de o pai fundar a primeira empresa Bin Laden, Salem fundou, em 1975, a Bin Laden Telecommunications.

Enquanto diversificavam os negócios e se matriculavam em universidades americanas -na Florida e na Califórnia, onde o clima era mais semelhante -, os Bin Laden continuavam a assegurar os projectos que lhes tinham dado estatuto: as renovações dos locais santos do islão.1979 foi um ano de múltiplos turbilhões para o islão e para os Bin Laden, parte deles em Meca.

O cerco à Grande Mesquita começou a 20 de Novembro: um grupo infiltrou armas em caixões e proclamou a chegada do redentor. Foi uma "catástrofe sangrenta" e os Bin Laden tiveram de participar. Com plantas que tinham nos escritórios, com os seus conhecimentos de arquitectura e engenharia e com os seus equipamentos de perfuração.

A revolta foi esmagada, mas abriu uma brecha na legitimidade dos Saud. Salem observara o que acontecera meses antes no Irão, com a Revolução Islâmica, e percebeu que se a família Saud caísse, a sua também cairia.

Ao mesmo tempo que lutava ao lado dos militares contra os atiradores nos minaretes, fazia nascer empresas em paraísos "off-shore". Logo depois, procurou um paraíso físico, para as pessoas: 60 lotes de uma propriedade chamada Oaktree Village, em Orlando, Florida, ao lado da Disneylândia. Se tudo corresse bem, uma casa de férias; se "o reino se desmoronasse, um refúgio ao lado do Reino Mágico".

Uma família, uma causa

Alguns sauditas condenaram a família real por ter usado de força no santuário e Osama terá estado entre eles. Mas 1979 ainda nãoterminara: em Dezembro, a União Soviética invadia o Afeganistão e Osama, com 21 anos, acordava para a sua vocação. No ano seguinte, partia para o Paquistão, "ali se proclamando um jovem activista filantropo". Salem, "que era um manipulador inteligente", também participou na causa.

Osama nunca mais parou de viajar para o Paquistão, depois para o Afeganistão, onde chegou a usar as máquinas da família para erguer defesas.

Salem viajava pelo mundo e ajudava-o.

Se os mundos dos dois se tocavam, eles afastavam-se cada vez mais.

Osama começava a acalentar um sonho: "unir uma coligação multinacional de voluntários árabes". Salem também sonhava: a caminho dos 40, queria casar e apostou com o rei Fahd que conseguia convencer "quatro jovens europeias e americanas a casarem com ele em simultâneo, tal como a lei islâmica autorizava". E assim, quatro mulheres que não se conheciam, todas suas namoradas, deram consigo em Offley Chase, a propriedade londrina de Salem, a ouvi-lo explicar que queria construir em Jidá "uma nova propriedade que se assemelhasse às Nações Unidas": uma bandeira para cada, um automóvel de cada país.

O matrimónio ONU falhou - só a namorada inglesa ficou - mas o sonho duraria sempre pouco porque Salem morreu como o pai, depressa. Mohamed desapareceu quando um piloto norte-americano falhou a aterragem numa pista aplanada junto a uma das suas obras, no deserto. Salem voou a direito num percurso em que precisava de subir, rumo a linhas eléctricas, ao experimentar um novo ultraleve no Kitty Hawk Field of Dreams, Texas.

Ambições frustradas

Não havia mais nenhum Bin Laden com o arrojo e a vertigem de Salem, mas sobravam muitos, adultos e com experiência nos negócios. Bakr, que não era o mais velho, surgiu a todos como a escolha lógica: irmão de Salem (e não meio-irmão), curador dos seus bens, tinha um curso de engenharia civil, era inteligente e responsável.

Estudara na Universidade de Miami, mas era mais tradicional do que o irmão, sem ser um conservador.

O novo patriarca reestruturou as empresas e reorganizou a família.

Talvez por isso, acabada a guerra afegã, Osama regressou por um tempo a casa. Bakr queria dignificar a mãe de Osama, pelo que o beneficiou nessa reorganização. "Osama sempre sentira que a mãe não fazia parte do grupo porque provinha de uma classe social mais baixa... Sentiase destroçado -os irmãos obtinham educação no estrangeiro, e ele não.

Bakr foi muito inteligente ao tentar incluir o irmão", explicou a Coll Sabry Ghoneim, director de comunicações dos Bin Laden no Egipto.

É fácil imaginar que Osama quisesse mais. "Entre os 30 e os 40 anos parece ter acreditado que seria um líder da família melhor -mais islâmico, também -do que os irmãos que estavam na liderança. Vários irmãos com esta ambição separaram-se do centro familiar de negócios para operar por si próprios e provar a sua capacidade, mas só Osama o fez construindo uma organização política violenta", diz-nos Steve Coll.

A Halliburton saudita

Durante muito tempo, conclui Coll, Osama quis ter tudo e pensou que podia. Mulheres, família, privilégios e, à sua maneira, Deus.

Mas a região não serenava, nem a família. Saddam Hussein decidiu invadir o Kuwait e ditou mais do que a sua sorte. Osama, que se via já como um chefe da guerrilha internacional, terá antecipado a invasão. Ainda leal aos Saud, ofereceu a sua ajuda. Eles preferiram a dos americanos. Os militares "infiéis" vieram para o reino dos santuários do islão e, como em todos os projectos de monta, os Bin Ladens participaram. O Saudi bin Laden Group construiu um heliporto para apoio ao exército. A Bin Laden Telecommunications instalou sistemas de comunicação para o Comando Central e para a 35ª Brigada.

Os Bin Laden eram há muito a Halliburton dos Saud: com os EUA, Mohamed já tinha ajudado a construir infra-estruturas militares junto à fronteira com o Iémen, quando Nasser enviara egípcios para aí travar uma guerra com Riad.

No reino, começou a ganhar força a teoria de que a aliança dos Saud com Washington visava uma sociedade mais secular. Osama era cada vez mais oposição. Num exílio voluntário, passou pelo Iémen e instalou-se no Sudão, antes de regressar ao Afeganistão.

Enquanto as suas ambições cresciam, da guerra da Bósnia a operações terroristas na Líbia, os Saud e os Bin Laden tentavam recuperá-lo para o rebanho. Mas, quando um carrobomba explodiu no World Trade Center de Nova Iorque, em Fevereiro de 1993, Bakr e os Saud deixaram de o querer de volta: o irmão expurgou a família dele, fazendo-o desaparecer como accionista; o rei retirou-lhe a cidadania.

O Carlyle Group e o 11 de Setembro

Para Osama, o futuro era a "jihad" apátrida. Para a família, como sempre, eram os negócios, cada vez mais internacionais, cada vez mais americanos.

Em 1995, os Bin Laden foram aliciados por James Baker (o ex-secretário de Estado americano) para investir no Carlyle Group: com escritórios entre a Casa Branca e o Capitólio, tinha como promotores George H. W.Bush, dirigentes como o ex-secretário da Defesa Frank Carlucci e investidores como George Soros. Os Bin Laden mantinham negócios antigos, como a parceria como a General Electric, investindo em novos, como a agência United Press International, ou contribuindo para a Universidade de Tuffs, Boston.

Imagine-se um avião fretado que vai parando e se enche de passageiros nervosos: há um homem alto, com um bigode fino, óculos escuros e fato Bijan, saído de uma reunião do Carlyle; uma mulher "com perto de 45 anos, vestida ao estilo elegante e profissional" de uma empresária norte-americana; universitários que soam e parecem americanos; mulheres mais velhas vestidas de forma mais conservadora. À chegada a Paris, todas se cobrem de "abbayas" pretas antes de entrarem noutro avião, a caminho de casa.

É a nave Bin Laden e encheu-se assim a 13 de Setembro de 2001 nos EUA. Quando os aviões embateram nas torres nova-iorquinas e no Pentágono, a família e o país foram arrancados um do outro. Osama nunca mais poderia ser ignorado e o mundo dos Bin Laden mudava para sempre.

A família sobreviveu, mesmo sem Oaktree. Os Saud também, apesar de Osama ter abalado uma aliança de seis décadas. Mas até essa sobreviveu: "Desde que o petróleo foi descoberto, nos anos 1930, esta tem sido uma relação de dependência e de desconfiança mútua. A América precisa do petróleo saudita para o seu estilo de vida, a família real precisa da protecção militar americana para que ninguém lhe roube o seu petróleo. Tanto a dependência como a desconfiança continuam", resume Coll ao Ípsilon.

Coll deu a volta ao mundo em quatro anos para escrever "Os Bin Ladens".

Agora está no Paquistão, de onde respondeu por email e de onde tem escrito no seu blogue na "New Yorker".

Pouco antes de partir, publicava um artigo sobre uma dúvida nãoesclarecida: terá Osama viajado até aos EUA? No livro, Coll cita um artigo segundo o qual Osama visitou a América para levar um filho ao médico, talvez a Cleveland.

Agora, um empresário saudita afirma que Osama foi a Chicago recrutar engenheiros para o negócio da família. "Porque é que isto interessa?" Porque para o compreender temos de "ter em conta tudo o que ele é, ao mesmo tempo uma criatura da modernidade e da globalização".

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