O regresso da senhora Sinclair

A ex-mulher de Strauss-Kahn volta à vida pública com o seu livro My Grandfather’s Gallery e com a sua reputação incólume.

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Há um pequeno retrato de Anne Sinclair em pequena, com os seus olhos azuis, pendurado na sua imponente mansão da Place des Voges. Perto, está uma aguarela de Picasso, de uma fase tardia, com uma figura envergando um chapéu preto de abas largas. Uma réplica de uma natureza-morta de Picasso — a original está num cofre — ocupa um lugar de destaque por cima da lareira da sala.

As obras de arte são um legado do avô materno de Sinclair, Paul Rosenberg, marchand de Picasso, Braque, Matisse e outros, que reuniu uma vasta colecção de arte francesa — e uma grande fortuna — antes de o negócio ser confiscado pelo Governo de Vichy. A família sobreviveu, mas mais de 400 quadros perderam-se, e 60 continuam desaparecidos. No Outono passado, apareceu um Matisse no apartamento de Cornelius Gurlitt em Munique e a família está a tentar recuperá-lo.

Paul Rosenberg é a personagem principal do novo livro de Sinclair My Grandfather’s Gallery: A Family Memoir of Art and War (que pode ser traduzido como “A galeria do meu avô: memórias de família da arte e da guerra”), acabado de ser lançado nos Estados Unidos, dois anos depois de ser editado em França. O livro é uma espécie de regresso de Sinclair, uma das jornalistas de televisão mais célebres em França e actual directora do Le Huffington Post, a versão francesa do site, depois de anos em que terá sido mais conhecida como a mulher de Dominique Strauss-Kahn.

A sua vida tem sido rodeada de temas poderosos — arte, nazis, judeus, dinheiro, poder, sexo — e vários regressos. Numa conversa abrangente no mês passado, que foi da arte (inspiradora) aos media (em corrida para o abismo), o anti-semitismo em França (preocupante mas não excessivamente), a política francesa (deprimente) e o Médio Oriente (mais deprimente ainda), Sinclair, de 66 anos, apareceu amigável, acessível e calorosa, de franja escura, blusa de seda branca e preta, calças pretas e bâton cor-de-rosa, unhas dos pés encarnadas a aparecer através dos sapatos de salto abertos à frente.

Não revelou muito sobre a sua vida privada. Também não quis falar muito sobre o “incidente”, como lhe chamou. “O que aconteceu há três anos não foi a coisa mais feliz da minha vida, mas eu não posso ser reduzida a isso”, disse num inglês fluente, sentada numa cadeira giratória baixinha em frente a uma pequena mesa de vidro, num estúdio de pé-direito elevado. “Tudo isso foi muito penoso, mas agora ficou para trás.”

Disse que começou a escrever o livro em 2010, quando ainda vivia em Washington com Strauss-Kahn, o então director do Fundo Monetário Internacional, e que escreveu as últimas páginas enquanto viviam fechados num apartamento de TriBeCa, rodeados de jornalistas sensacionalistas, nos meses que se seguiram à sua detenção em Nova Iorque em Maio de 2011, por agressão sexual a uma empregada de hotel, até Julho, quando as acusações foram retiradas.

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Sinclair com o ex-marido, Dominique Strauss-Kahn, em Nova Iorque, em Agosto de 2011, depois de terem sido retiradas as queixas Allison Joyce/Reuters

O retrato de Sinclair enquanto menina foi pintado por Marie Laurencin, uma das raras mulheres no mundo do cubismo dominado por homens, a musa do poeta Guillaume Apollinaire e a primeira artista a assinar contrato com a galeria Rosenberg, em 1913. “Ela pintava sempre os olhos pretos”, diz Sinclair, apontando para outro retrato de Laurencin que está por cima do seu. “E quando me pintou eu disse: ‘Por favor, eu tenho olhos azuis’.”

Já em criança Sinclair sabia cuidar da sua imagem. E com o decorrer dos anos essa capacidade foi sendo aperfeiçoada. Com o seu conhecimento dos media, excelente timing e uma das melhores agendas de contactos da França, conseguiu um feito notável: emergiu do escândalo grotesco com a sua dignidade praticamente intocada. Ficou ao lado de Strauss-Kahn quando as suas tendências libertinas foram reveladas ao mundo inteiro, pagou a fiança para ele sair da prisão e depois, quando os holofotes se apagaram, o casal divorciou-se discretamente, em 2012.

Nos seus comentários mais extensos ao escândalo, num documentário sobre a sua vida transmitido pela televisão pública francesa em Abril, Sinclair afirmou que desconhecia a maior parte das aventuras extraconjugais de Strauss-Kahn. “Podem acreditar ou não, mas eu não sabia. Eu não sabia.”

Christine Ockrent, uma jornalista que apareceu pela mão de Sinclair na televisão francesa na década de 1980, quando Sinclair tinha o programa 7 sur 7, o equivalente francês ao Meet the Press, afirma que “a opinião pública francesa tem uma grande simpatia por ela”. Sinclair deixou o programa, onde era conhecida pelas suas inclinações socialistas e perguntas contundentes, em 1997, para evitar conflitos de interesses quando Strauss-Kahn, com quem casara em 1991, foi nomeado ministro das Finanças. “Uma simpatia bem merecida”, acrescenta Ockrent, “porque ela se portou de uma forma extremamente decente para o que era habitual”.

Algumas feministas discordam. Em 2011, a jornalista francesa Nabila Ramdani escreveu que a “imagem enganadora de Sinclair como modelo para as mulheres” era “repugnante” e “encobria o facto de nunca ter criticado os excessos do comportamento de Strauss-Kahn em relação às mulheres”.

Ultimamente, a contenção de Sinclair tem contrastado com a abordagem contar-tudo de Valérie Trierweiler, jornalista e antiga companheira do Presidente François Hollande, cujo livro de mexericos sobre o tempo que passou no Palácio do Eliseu — e a sua tentativa de suicídio quando soube que Hollande tinha uma amante — foi publicado em França este mês.

Esse não é de todo o estilo de Sinclair. “Acho que a vida privada é privada”, diz. Em My Granfather’s Gallery escreve: “Abomino a transparência absoluta, que acho no mínimo voyeurista e chega a ser totalitária.”

Sinclair, que nasceu em Nova Iorque, escreve que sempre se interessou mais por política do que por arte e que se identificava sobretudo com o pai, que trabalhou para a Resistência francesa durante a II Guerra Mundial e trocou o apelido Schwartz pelo nome de guerra Sinclair, que encontrou na lista telefónica de Nova Iorque.

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Com o avô, Paul Rosenberg, sobre quem escreveu My Grandfather’s Gallery Cortesia da Família Sinclair/New York Times

My Granfather’s Gallery não é tanto uma tentativa de auto-revelação, mas mais um esforço de apresentar as suas origens, depois de ter passado anos sem as realçar. “Eu queria construir a minha vida e a minha carreira sem ser como uma herdeira”, diz. Na terra da egalité, acrescenta, simplesmente não se discute a riqueza de alguém. “Nos Estados Unidos, as pessoas orgulham-se por ter dinheiro, porque o conquistaram e porque não têm de o esconder”, afirma. “Os franceses não gostam muito das pessoas bem-sucedidas. Por isso o sucesso é sempre... como dizê-lo?... de mau gosto.”

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Rosenberg com um quadro de Matisse na década de 1930 Cortesia da Família Sinclair/New York Times

Quando as suas memórias foram publicadas em França, em 2012, foram vistas como fazendo parte do seu projecto de reabilitação. Se tivessem saído em 2011, como estava inicialmente planeado, seriam uma explicação sobre a fortuna familiar — construída sobre a cultura, o bem francês mais precioso — para os potenciais eleitores socialistas de Strauss-Kahn. Antes de ter caído em desgraça, esperava-se o anúncio da sua candidatura às presidência do partido. (Até ter pago um milhão de dólares de caução para o marido sair da prisão, a maioria das pessoas, mesmo em França, sabia pouco sobre os seus antecedentes.)

“Basicamente, o livro foi escrito para a campanha eleitoral e depois as notícias vieram mudar isso”, afirma Christophe Barbier, director do semanário L’Express. A ala mais à esquerda do Partido Socialista não estava confortável com a riqueza do casal. Raphaëlle Bacqué, jornalista do Le Monde e autora do livro The Strauss-Kahns afirma: “Uma grande parte da esquerda acusa-a de ‘esquerda caviar’”, ou de ser uma liberal de limousine.

O livro começa quando Sinclair — que escreve que uma vez posou para uma estátua de Marianne, a encarnação de França que se vê nos gabinetes oficiais — vai renovar o seu bilhete de identidade e um burocrata a questiona sobre os seus dados. Isso e a morte da mãe, em 2006, levam-na a olhar para trás.

Paul Rosenberg, que morreu em 1959, quando Sinclair tinha 11 anos, herdou a galeria do seu pai, antigo comerciante de cereais que se tornou negociante de arte impressionista. Em 1910, Paul estabeleceu-se por conta própria, abrindo uma grande galeria no chique 8éme Arrondissement de Paris. “Quando os visitantes estavam hesitantes com Braque ou Léger, Paul convidava-os a subir ao andar de cima e a ver trabalhos de contornos mais suaves de Edgar Degas, Pierre-Auguste Renoir ou August Rodin”, escreve.

Rosenberg vendeu obras de Géricault, Ingres, Delacroix, Cézanne, Manet, Monet, Renoir, Gauguin, Bonnard e Modigliani, entre outros. Mas era particularmente próximo de Picasso. Depois de se terem encontrado no Sul de França, em 1918, Picasso deu a Rosenberg os direitos de preferência sobre os seus quadros.

Em 1919, a primeira exposição de Picasso na galeria de Rosenberg apresentava pela primeira vez o seu trabalho pós-cubista. Com o decorrer dos anos, artista e marchand trocaram várias cartas, que estão agora nos arquivos do Museu Picasso, em Paris, que este Outono irá reabrir depois de uma longa renovação.

Ao longo da década de 1930, com a guerra no horizonte, Rosenberg teve o bom senso de enviar as suas obras para o estrangeiro e emprestar algumas a museus, incluindo o recém-criado Museu de Arte Moderna [em Nova Iorque], cujo primeiro director, Alfred Barr, era um amigo chegado. Depois de ser declarada a guerra na Europa, a 3 de Setembro de 1939, Rosenberg levou a família para Nova Iorque. Chegaram em 1940 e ficaram até 1945. Paul abriu uma galeria em Nova Iorque, que o filho, Alexandre, tio de Sinclair, manteve até à década de 1980.

Sinclair escreve que quando Rosenberg, veterano da I Guerra e patriota angustiado com a triste realidade que se vivia em França, foi informado de que a família tinha sido “desnacionalizada”, enviou um telegrama infrutífero aos líderes de Vichy, declarando: “Tomei conhecimento da minha desnacionalização ordenada a 23 de Fevereiro de 1942. Protesto energicamente e tenho fortes reservas. Seguirá carta.”

Mas My Grandfather’s Gallery não é um livro zangado. Sinclair diz que regra geral a França redimiu-se dos pecados cometidos durante a guerra. Os membros da família “apenas sofreram danos materiais”, adianta. “Claro que as obras de arte foram pilhadas, mas não morreram.”

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Anne Sinclair com Picasso, em 1968 Cortesia da Família Sinclair/New York Times

Afirma que a família se manteve em contacto com as autoridades alemãs e suíças por causa da Mulher Sentada, de 1923, o quadro de Matisse que foi encontrado no ano passado na colecção Gurlitt. Dos mais de 400 quadros da colecção original de Rosenberg que foram recuperados, Sinclair manteve quatro grandes obras, herdadas da sua mãe, mas recusa-se a revelar quais foram ou se incluem o original do Picasso que está por cima da sua lareira.

Em França, há a ideia de que terá vendido algumas obras para financiar as contas judiciais de Strauss-Kahn, mas ela diz que não. Ainda assim, em 2007, vendeu L’Odalisque, Harmonie Bleue, herdado da mãe, arrematado por 33,6 milhões de dólares na Christie’s.

Nessa altura, parecia que Strauss-Kahn tinha possibilidades de se tornar Presidente da República. Agora, Sinclair proclama de forma pouco convincente que não estava à espera disso. “Observei a cena política de perto durante tanto tempo que nunca sonhei tornar-me parte dela”, diz. “Mas como disse aos meus filhos e ao meu marido: ‘Bem, se é a tua vida, aquilo que sentes. Se queres avançar, eu seguirei. Mas sou contra’.”

Actualmente, parece satisfeita. Gosta de trabalhar com o Le Huffington Post. “Ela realmente superou todas as minhas expectativas”, declara Arianna Huffington, adiantando que Sinclair, “natural” na TV, está a ajudar o site a expandir as suas operações de vídeo na Internet. Este Outono, vai começar um programa de entrevistas na rádio. E está agora com Pierre Nora, historiador e editor francês.

Permanecem algumas questões. O que passa pela cabeça de uma mulher quando escolhe ficar com um marido como Strauss-Kahn? O que diria à empregada de hotel, Nafissatou Diallo, se a encontrasse? Se fosse a própria Sinclair a conduzir a entrevista, talvez fizesse estas perguntas. “Sim”, diz, de pé ao lado da aguarela de Picasso. Sorri. “E não teria respondido.”

Exclusivo PÚBLICO/The New York Times      

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