O protesto que começou feminista e está a testar a esquerda brasileira

A esquerda no Brasil está fragmentada num momento em que o saldo de quase 13 anos de governos de esquerda é uma crise. A mobilização nas ruas contra Eduardo Cunha, deputado conservador, é um ponto de convergência. Um protesto nacional está marcado para hoje, em quase 30 cidades.

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Eduardo Cunha, conservador e acusado de corrupção, teve um efeito aglutinador junto das esquerdas Nacho Doce/reuters

No dia em que uma comissão parlamentar em Brasília aprovou um projecto-lei da autoria de Eduardo Cunha que dificulta a interrupção voluntária da gravidez em casos de violação, Mariana Patrício, mãe de um menino de três anos, desabafou no sítio do costume. “Se já existe quero me juntar, se não existe quero criar, mas está mais que na hora de formarmos o movimento Mulheres contra Cunha. Não há dúvida que somos o alvo principal dele. Precisamos nos defender. E rápido”, escreveu no seu Facebook pessoal. Em poucos minutos, choveu uma centena de likes, o que convenceu Mariana, 34, a criar o evento Mulheres Contra Cunha, com foto e tudo. “Nesse mesmo dia, quando cheguei em casa de noite, tinha 5700 pessoas confirmadas.” Uma semana depois, a 28 de Outubro, milhares de mulheres foram para a rua gritar contra Cunha no Rio e em São Paulo dois dias mais tarde.

O protesto feminista, que foi novamente convocado para quinta-feira, parece ter inspirado outros grupos e organizações a irem para a rua pedir o afastamento do presidente da Câmara dos Deputados, que personifica um dos Congressos mais conservadores de que o Brasil tem memória. Uma mobilização popular, intitulada Fora Cunha!!!, está marcada para esta sexta-feira, em quase 30 cidades de vários estados. Apesar das suspeitas de corrupção que há meses pesam sobre Cunha e da revelação de que tem contas milionárias na Suíça, não declaradas ao fisco, de origem não esclarecida, o parlamentar, que pertence ao PMDB, partido aliado do governo, permanece no cargo, graças a um jogo de manobras legislativas e alianças intrapartidárias. Todos os dias a novela Eduardo Cunha tem novos desenvolvimentos que chocam o Brasil mas não parecem ir para lado nenhum. Deputados do PSOL e da Rede pediram a abertura de uma investigação no Conselho de Ética, mas Cunha está a tentar empurrar o processo para Abril de 2016. Os brasileiros não acreditam mais que a política institucional possa resolver o problema.

“Enquanto Cunha for presidente da Câmara dos Deputados, ele vai-se servir de todo o tipo de manobra para atrapalhar uma investigação mais consequente. A gente sabe que é só com a mobilização popular que se consegue pressionar os deputados que estão no Conselho de Ética e os parlamentares como um todo a terem uma postura mais incisiva na saída do Cunha”, diz Thiago Ferreira, 26, do Levante Popular da Juventude, organização que procura incentivar a mobilização política junto de jovens. Na semana passada, Thiago provocou agitação na Câmara dos Deputados. Ele esperou pelo momento em que Eduardo Cunha apareceu no Salão Verde para dar a sua habitual conferência de imprensa e atirou uma pilha de dólares falsos – notas de 100, com a cara de Cunha – sobre o parlamentar frente às câmaras. Uns dias antes, ele e 400 jovens protestaram frente à residência de Cunha em Brasília. E esta sexta-feira vão marchar até ao Congresso.

“Essas acções visam sensibilizar a sociedade, atrair novamente para as ruas toda aquela juventude crítica, progressista, que esteve nas manifestações de Junho 2013. Não estamos a falar apenas de uma troca de representação. Não nos satisfaz a saída de Cunha e a entrada de outro tão conservador quanto ele. A gente está falando de uma luta pelos direitos das mulheres, pelos direitos dos jovens negros de periferia, pelo direito à terra que os indígenas têm previsto, na Constituição inclusive. É a pauta regressiva, conservadora do Eduardo Cunha que a gente quer derrotar”, conclui Thiago Ferreira. Desde que assumiu a presidência da Câmara dos Deputados, Cunha tem promovido e acelerado uma agenda legislativa conservadora, como a redução da maioridade penal de 18 para os 16 anos, a liberalização do porte de armas, o endurecimento da lei do aborto, que já é ilegal no Brasil, a proposta de criação do dia do Orgulho Heterossexual, uma demarcação mais limitada das terras indígenas.

“Em 2014 elegemos o Congresso mais reaccionário desde a redemocratização. E o Eduardo Cunha é uma expressão máxima disso”, diz Natalia Szermeta, 28, estudante de direito. “Tivemos um crescimento da chamada ‘bancada da bala’, que é a turma defensora do genocídio, defensora de que ‘bandido bom é bandido morto’, com vários ex-coronéis da Polícia Militar. A outra bancada que cresceu muito é a bancada evangélica. O problema não é as pessoas serem evangélicas, a religião de cada um tem que ser respeitada. Mas a partir do momento que você é um representante no Parlamento, tem que respeitar os direitos constitucionais de todos, não do teu sector. O nosso Estado é laico, ele garante o direito de manifestação de todos, mas a bancada evangélica, por exemplo, diz que ser homossexual é doença, que tem que ser curado com medicação”, diz Natalia, que é coordenadora do Movimento dos Trabalhadores Sem Tecto (MTST), organização que se tornou muito activa no período pré-Copa do Mundo, protestando contra a especulação imobiliária e contra as remoções provocadas pelas obras. 

"Não está rolando uma briga"
A oposição a Cunha está a ter um efeito aglutinador junto das esquerdas brasileiras, que 12 anos de governação do PT colocaram numa encruzilhada. No último ano, a direita brasileira, que não tem uma tradição de mobilização popular, parece ter estado mais na rua do que a esquerda, protestando contra Dilma, o PT, e o legado de Lula. Tem sido difícil para as esquerdas encontrar um equilíbrio entre criticar o Governo sem engrossar o coro da direita que reclama o impeachment de Dilma.

“Você tem uma esquerda que se mantém numa dificuldade de defender o Governo, que está praticando um ajuste fiscal que atinge directamente os trabalhadores, através da retirada de direitos, de diminuição de salários, uma série de coisas, e que não dá para ser defendido. E ao mesmo tempo você tem uma direita feroz e activa, que está contra o Governo e tomando as ruas. O cenário é bastante delicado por conta disso. Porque você tem hoje uma direita que ganha o debate não porque as pessoas são de direita, mas porque o senso comum é de que a vida está muito ruim de facto”, resume Natalia Szermeta.

A esquerda brasileira é hoje “um universo muito plural”, assinala o cientista político Jean Tible, da Universidade de São Paulo, que inclui sensibilidades e posturas muito diferentes: sectores próximos do Governo e historicamente ligados ao PT, sectores que fazem oposição eleitoral ao Governo, como o PSOL, grupos de formação mais espontânea e apartidária “que se colocam mais de fora na disputa Governo-oposição, repudiam a política institucional de uma forma geral e não encontram tanta diferença entre as posições em conflito”. “O Eduardo Cunha ajuda a juntar essas turmas todas”, diz Jean Tible.

“Para a esquerda hoje, a unidade é uma questão de sobrevivência”, diz Natalia Szermeta. “A esquerda não pode mais brigar por uma vírgula ou por tendências internacionais. Cada dia que passa a gente está perdendo porque aprovam uma aberração no Congresso que retira cada vez mais os nossos direitos. Isso está acima de qualquer bandeira partidária, de qualquer colectivo.”

Ainda assim, duas manifestações contra Cunha foram convocadas em dias diferentes. Uma ontem, quinta-feira, organizada por grupos feministas e independentes (novamente intitulado Mulheres Contra Cunha), e um “acto nacional” hoje, sexta, reunindo movimentos e grupos que formam uma base de defesa do Governo (Fora Cunha!!!). “Mesmo com essas divergências, o pessoal do dia 13 está divulgando o acto do dia 12. Não está rolando uma briga, mas está rolando uma vontade de marcar diferença”, nota Mariana Patrício.

O MTST, por exemplo, não planeia estar presente nas manifestações desta sexta. “Estaremos dia 12. No dia 13, não”, diz Natalia Szermeta. “Não sabíamos que a mobilização ia ocorrer, não fomos convidados a participar. O que para nós é um reflexo da necessidade de ter um espaço amplo que aglomere todo o mundo. Um espaço que está sendo construído especialmente por um movimento de mulheres feministas que são apartidárias ou avessas a organizações.”

 

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