O novo xadrez mundial

Os EUA continuam, gostem ou não, a desempenhar um papel fundamental nesta reorganização brutal da geopolítica mundial.

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1. Gideon Rachman perguntava na sua habitual coluna do Financial Times qual deveria ser a prioridade da política externa de Obama nos anos que faltam para o fim do seu mandato: a ascensão da China, as agressões da Rússia ou o Médio Oriente, com a nova ameaça do Estado Islâmico. Para concluir que as opiniões divergem no próprio establishment americano das relações externas.

A China é, sem dúvida, um desafio gigantesco no médio e longo prazo. A América precisa de seguir uma estratégia de equilibrista: conter o seu poder e, ao mesmo tempo, cooperar com ela. A Rússia é hoje uma ameaça séria à segurança europeia, tão evidente que até em Berlim começa a ser vista como tal, levando Merkel a agir em conformidade. No Médio Oriente, a entrada em cena do autoproclamado Estado Islâmico e a guerra na Síria obrigam os EUA a agir militarmente para impedir a desagregação do Iraque. Nesta frente, as negociações com o Irão podem ser a pedra de toque de uma nova estratégia americana que mudará radicalmente os equilíbrios regionais. Mesmo que corram mal, o interesse de ambas as partes (América e Irão) num acordo é suficientemente grande para manter as negociações de Genebra. Entretanto, Obama está a reforçar a sua presença militar no Iraque e vai deixar no Afeganistão mais tropas do que inicialmente estava previsto, de resto com alguns aliados europeus. Aprendeu em Bagdad que sair cedo de mais pode ser arriscado.

Rachman inclina-se para considerar o comportamento agressivo de Putin como o desafio mais urgente pelos perigos que envolve e pela imprevisibilidade do líder russo. A Rússia é uma grande potência nuclear e, como a história da Guerra Fria nos ensina, às vezes basta um mal-entendido ou uma provocação que correu mal para levar a uma escalada. Os analistas consideram que é mais provável um ataque convencional, que vise, por exemplo, os Bálticos para colocar a NATO e o Ocidente numa situação extremamente difícil.

Quanto à China, que também tem muitos adeptos e que foi a grande propriedade estabelecida por Obama quando chegou à Casa Branca, a entrada em cena de Xi Jinping em Março do ano passado abriu uma nova etapa, mais complexa e mais exigente para Washington. Xi, a quem a Time chamava imperador numa das suas mais recentes capas, imprimiu uma dinâmica nova aos objectivos estratégicos da China. A nível interno tratou de concentrar o poder nas suas mãos, incluindo o militar, e lançou uma campanha feroz contra a corrupção, que está a minar a credibilidade do Partido Comunista e a levar à revolta de muita gente. Mantém uma mão firme na economia, como se viu na semana passada ao descer a taxa de juro para contrariar a desaceleração do crescimento. Na política externa, a “ascensão pacífica” definida por Deng está a dar lugar rapidamente a uma presença mais activa e mais intimidatória a nível regional, abrindo uma série de conflitos com a Tailândia, o Vietname, a Coreia do Sul ou o Japão. Esta nova afirmação regional pode abrandar mas não vai parar e colide directamente com a presença americana no Pacífico e o seu compromisso com a segurança dos seus aliados. É para lá que está a convergir a maior parte do poder militar americano. Obama segue uma estratégia de “cultivar” as suas relações com Pequim, dando à China a dimensão de parceiro principal e empurrando Putin para o estatuto de potência regional em declínio. A sua tarefa está hoje dificultada pela aparência de fraqueza com que é visto em Pequim. A China (e não só ela) pode cometer o erro de a ver como uma superpotência em rápido declínio.

2. Entre 11 e 17 de Novembro, o Presidente americano participou em quatro cimeiras asiáticas e cumpriu uma visita de Estado à China. Começou com a cimeira da APEC em Pequim, que foi o palco deste complexo jogo de influências entre os EUA e a China. Xi diz que compete aos países da região tratar da sua própria segurança. Obama não perdeu uma oportunidade para dizer que os EUA estavam lá para ficar e para garantir a segurança dos seus aliados na zona, que são muitos e que olham hoje para os EUA como os únicos garantes da sua segurança. O seu medo é ter de escolher alguma vez entre Pequim e Washington. Dependem da América para a estabilidade regional, dependem da China para o seu desenvolvimento económico. Xi propôs um acordo de comércio, desafiando a Parceria Trans-Pacífica que os EUA estão a negociar com muitos dos seus parceiros asiáticos, incluindo o Japão mas excluindo a China. Politicamente, a questão mais importante desta cimeira da APEC foi o encontro de 25 minutos entre Xi e Shinzo Abe, a primeira desde a chegada ao poder do primeiro-ministro japonês, com a sua retórica mais nacionalista. O aperto de mão não foi cordial mas é melhor do que nada, como sublinham os analistas. Como Joe Biden disse a Abe no auge da última crise entre os dois países (respectivamente a segunda e a terceira economias mundiais) por causa das ilhas Senkaku, que ambos reivindicam, a prioridade é manter um “telefone vermelho” para evitar más interpretações.

De resto, Obama aproveitou uma conversa com estudantes em Brisbane para dizer que a segurança na Ásia deve depender de alianças múltiplas, que não há a menor questão sobre o compromisso americana com os seus aliados da Ásia-Pacífico e que a política externa não pode basear-se na intimidação. Xi não lhe negou um jantar na Cidade Proibida e um inédito e inesperado acordo sobre o compromisso mútuo de reduzir as emissões de carbono até 2030, que foi visto como uma boa notícia nas instâncias internacionais. Não foi um grande sucesso, mas significa que a China, se quer ocupar um espaço político na cena internacional, tem de incluir nas suas responsabilidades as questões globais, do clima ao terrorismo. A China vê-se como a única potência à altura dos EUA. Mas joga em vários tabuleiros. Com a Rússia para o fornecimento de energia. Com os BRICS para obrigar à reforma do FMI e do Banco Mundial, onde estão longe de ter o peso que acham merecido. Vai financiar boa parte de um novo Banco de Desenvolvimento e um novo fundo aprovado na cimeira de Fortaleza em Junho para replicar as instituições de Bretton Woods.

3. Na APEC ou no G20, a coreografia das cimeiras não deixou dúvidas sobre quem são os actores principais. Putin apenas conseguiu ser o alvo das críticas ocidentais ao seu comportamento na Ucrânia, mostrando mais uma vez que a Europa e os EUA não se preparam para deixar cara a sua agressão à Ucrânia. Saiu de Brisbane mais cedo, alegando as 18 horas de voo para Moscovo. Disse para consumo interno que a cimeira fora “muito amigável e construtiva”. Não foi isso que aconteceu. Chegou a Brisbane com uma economia de rastos, devido às sanções mas também à queda do preço de petróleo e à desvalorização acentuada do rublo. Bastou um ano para que os EUA voltassem, com a China, a ser a locomotiva do crescimento mundial, pondo em causa a “certeza” de alguns BRICS sobre a inevitável decadência da economia americana depois da crise de 2008. Também lhe deve parecer preocupante ouvir a chanceler alemã, de uma forma muito pouco diplomática, dizer que “não trata apenas da Ucrânia”. “Trata-se também da Moldávia, da Geórgia e, se isto continua, será necessário colocar também a questão da Sérvia? Dos Balcãs Ocidentais? Isto não é de forma nenhuma compatível com os nossos valores.” Antes, Merkel tinha dito que “as velhas formas de pensar em termos de esferas de influência que ignoram as leis internacionais não devem ser aceites.”

Enfim, a escolha proposta por Rachman é de resposta difícil. Os EUA continuam, gostem ou não, a desempenhar um papel fundamental nesta reorganização brutal da geopolítica mundial. Por enquanto, apenas Obama consegue electrizar uma audiência jovem como aconteceu na Austrália. Falta à Europa encontrar o seu lugar e definir os seus interesses. Para isso precisa de olhar para a sua economia como apenas uma parte dos desafios que enfrenta. 

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