Liberdade de imprensa sobreviverá à maior fuga de informação da história

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O caso deve levar a um reforço da segurança de empresas e governos Shannon Stapleton/REUTERS

A fuga de informação maciça de mais de 250 mil telegramas do Departamento de Estado norte-americano começou por ser uma crise diplomática que podia "mudar tudo". Após sete dias a fazer manchetes, e com uma sucessão de ataques ao site da WikiLeaks e tentativas para o suprimir, tornou-se numa discussão sobre a liberdade de expressão e também sobre a liberdade de imprensa.

Não faltaram os comentadores a preconizar um futuro próximo em que os governos se fechariam cada vez mais, tentando controlar a sua informação atrás de sete chaves, com a síndroma pós-casa roubada.

"O "culpado" é a Internet, e a forma como facilita o poder assimétrico e a transparência e remove a responsabilidade individual por essa transparência e assimetria", escreveu Joe Klein no site da revista "Time". "A única maneira de o ter evitado seria (...) que a Administração voltasse aos dias do pombo-correio", disse, talvez não totalmente a brincar.

O preconizado encerramento da Administração americana em si própria, como um ouriço-cacheiro, começou logo que foram publicadas as primeiras comunicações em que se revelava a forma como Washington conduz a sua política externa. As duas grandes bases de dados que tinham sido conectadas depois do 11 de Setembro - a do Departamento de Defesa, chamada SIPRNet, e a do Departamento de Estado, a Net Centric Diplomacy Database - foram separadas.

O regresso a um mundo cheio de cercas, em vez de cada vez mais ligado entre si, será uma das consequências da maior fuga de informação da história?

Uma antiga tensão

"É irrealista imaginar que um Estado se desconecte da tecnologia", diz, ao telefone a partir de Washington, Catherine Lotrionte, directora adjunta do Instituto de Direito, Ciência e Segurança Global da Universidade de Georgetown e directora do Projecto de Cibersegurança, numa parceria com o Laboratório Nacional Lawrence Livermore.

"Isto não é uma história nova, é uma história clássica, da tensão entre a necessidade de o Estado manter o silêncio sobre assuntos sensíveis e o desejo do público de ter mais informação. É um exercício de equilíbrio, que tem de ser feito dentro das leis de um país", considera. "O que é novo neste caso é o volume de dados revelados sem autorização", nota Lotrionte, que está a escrever um livro sobre as leis de segurança nacional nos EUA após o fim da Guerra Fria.

"Isto só foi possível graças à tecnologia, mas também porque houve uma decisão antes, relativa à forma como o Governo utiliza a tecnologia."

"A comissão de investigação do 11 de Setembro recomendou que houvesse mais partilha de informação [entre agências e organismos governamentais], tanto horizontalmente, como verticalmente", explica Lotrionte. Por isso, o Departamento de Estado e o da Defesa passaram a estar ligados, e a sua informação acessível a muitas pessoas - até soldados no Iraque e no Afeganistão poderiam conhecer apreciações, julga-se que pertinentes para a sua situação, feitas por diplomatas em qualquer parte do globo.

"Quanto mais informação se coloca num sistema, e mais pessoas têm acesso a ele, mais interessante se pode tornar. Mas isto traz riscos - é um dilema clássico", sublinha Catherine Lotrionte. "Com o aumento dos acessos, mesmo que também aumente a segurança, é garantido que haverá fugas. Pode ser uma fuga interna, alguém que viola a segurança; pode ser uma brecha que vem do exterior, possibilitada pela tecnologia; ou espionagem clássica", enumera.

"Neste caso, foi um informador interno", diz, referindo-se às suspeitas que recaem sobre o soldado Bradley Manning de que tenha gravado estes dados num CD, quando estava colocado no Iraque.

Reforço de segurança

Mas então o futuro vai trazer-nos mais restrições no acesso à informação, tanto pelo cidadão comum como pelos jornalistas - que actuam como mediadores entre os cidadãos e o poder, na obtenção de informação do interesse público. Será assim?

"É evidente que toda a informação que se publica e que algum poder não quer que se publique gera uma reacção", responde Vicente Jiménez Navas, director adjunto do "El País", um dos cinco jornais que tiveram acesso aos telegramas da WikiLeaks, para lhes darem tratamento jornalístico.

"Esse poder vai reforçar o controlo dos seus meios de segurança. Terá acontecido isso com os Pentagon Papers ou com o escândalo do Watergate. Não estamos perante uma situação muito nova. A diferença é que pela primeira vez um grupo de media acedeu a uma quantidade imensa de documentos sobre a política externa de uma das grandes potências", concluiu Jiménez Navas. "Isso vai dificultar o trabalho de todos os jornalistas, pelo menos numa primeira fase." Mas a longo prazo, acredita, "a democracia sai reforçada".

"Sem dúvida que os governos e as empresas vão tentar reforçar a segurança para evitar futuras fugas", considera, por seu lado, Mark Fedelstein, professor na Escola de Media da Universidade de George Washington, em Washington D.C., especialista em história do jornalismo e ética, jornalismo de investigação e liberdade de imprensa e de expressão - e WikiLeaks.

A Primeira Emenda

Lotrionte, que não é jornalista, tem uma visão mais optimista. "A liberdade de imprensa e de expressão têm sido parte da cultura deste país. São garantidas pela Primeira Emenda da Constituição, e não é por mera coincidência que é a primeira! A segurança nacional teve sempre de estar em equilíbrio com a Primeira Emenda."

Mark Fedelstein vê na enorme projecção que este caso teve algo que pode funcionar como uma inspiração para outras organizações. "Pode dar coragem a outros para denunciar abusos de poder importantes, tanto no sector público como no privado. Numa época em que o crime, a poluição, e outros problemas se tornaram globais, também o jornalismo de investigação se deve tornar global."

Para o professor de Jornalismo, "apesar das suas imperfeições, a WikiLeaks é um passo na direcção certa". É um exemplo: "Espero que seja copiado pelo mundo fora."

Lotrionte não vai por aí. A aposta dela é mesmo na democracia americana. "Os cidadãos não precisam de saber tudo. Se os amigos sabem tudo, também os que nos querem fazer mal saberão. Mas no estrangeiro, por vezes, riem-se de nós, das nossas leis de liberdade de imprensa, que obrigam os eleitos a prestar contas aos eleitores, acham estranho. O que eu respondo é: "O.K., isso é o que nos torna os mais poderosos.""

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