Jornalismo interactivo

A bela húngara é “um monstro”? O homem velho com a criança ao colo é “inocente”?

É uma das notícias da semana: uma jornalista húngara filmava os refugiados correndo junto à fronteira. Eles passavam por ela aos magotes. A dada altura, é humano, não resistiu a intervir e, quando um homem mais velho passou com uma criança ao colo, a bela húngara pregou-lhe uma rasteira.

Como teve o azar de ser filmada veio a descobrir-se que, pouco antes, tinha já dado corajosos golpes de pontapé numa miúda que passava. A TV para a qual trabalhava despediu-a, suspeito que não por ter cometido esses actos mas pelo crime maior de ter sido apanhada. Mas a senhora não deve estar preocupada: há um ano um agente que, com poucos meses de serviço, matou em Madison um jovem afro-americano desarmado também foi demitido. Mas como não há mal que não venha por bem, uma cadeia de bons patriotas solidários com a sua “coragem contra o crime” permitiu-lhe juntar uma pequena fortuna para pagar, a pronto, uma casa. Um final feliz, portanto. Talvez a bela húngara tenha também o seu final feliz após o despedimento sumário por, tão só, ter decidido passar à acção. A extrema-esquerda tem um historial de repórteres e padres que tomam partido e denunciam e salvam e protegem? Ora por que motivo não haveria a extrema-direita de ter também os seus heróis? É justo.

Agora a pergunta: a bela húngara é “um monstro”? O homem velho com a criança ao colo é “inocente”? O gesto dela foi pensado ou espontâneo? Calculado e/ou provocado? Tenho por método separar os actos das pessoas. Os actos em si podem ser monstruosos, estúpidos, desumanos, assustadores, reveladores ou indiciadores de algo de muito avariado na cabeça ou na alma de quem os pratica. Mas são sempre os actos que são “desumanos”, não as pessoas. Caso contrário estaremos a fazer o que aqueles de quem não gostamos fazem: a desumanizar o adversário. Ora esta bela húngara tem direito à sua humanidade. O que ela fez é humano e, até certo ponto, dentro do espírito do tempo. Os jornalistas sempre tomaram partido – não é preciso ver os debates políticos em Portugal para o saber. O estranho seria se não tomassem! Acontece é que os bons profissionais controlam os seus instintos, vigiam-nos, têm noção de que o espírito do maniqueísmo espreita a cada momento. Perguntam-se sempre por que escolhem aquela imagem e não esta, aquela palavra e não esta. Um jornal ou um telejornal são preciosas amostras das árduas escolhas que editores e jornalistas enfrentam diariamente: que notícia alinhar primeiro? Qual ficará de fora? Que assunto é mais pertinente, quanto tempo dar, quantas linhas, que título escolher, página par ou página ímpar? Etc.

Há pouco mais de uma década oficializou-se, com termo técnico e tudo, a sinergia funcional (umas vezes oportuna, outras apenas oportunista) entre os “nossos militares” e os “nossos jornalistas”. O famoso “embedded” da guerra do Iraque, lembram-se? E até a BBC sabe muito bem, nas suas reportagens objectivas, como o tom de voz trocista, veemente ou indignado do jornalista marca a leitura que se quer dar no aparentemente neutral documentário. Tomar partido não tem mal, e imagino o que se terá passado na cabeça desta bela húngara, num gesto que lembra muito o subchefe da PSP de Guimarães. Aqueles refugiados avançavam na sua direcção, quase a atropelavam (pareciam irritantes ciclistas, só que sem bicicleta) e ela, coitada, apenas reagiu. Afinal estava na sua terra e, ao contrário de alguns deles (sabe-se lá, mas todo o cuidado é pouco) armada apenas com uma máquina de filmar… e um inesperado talento para pregar rasteiras. De um lado refugiados, do outro nós. Além disso, era uma frágil mulher contra uma horda de homens brutos e feros. Certo, teve azar por as imagens colhidas a verem agredir apenas um velho com uma criança ao colo ou uma menina de uns dez anos. Mas até isso é humano, tristemente humano: da próxima, se próxima houver, afinará a pontaria. E certificar-se-á de que só haverá câmaras amigas.

Escritor

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