Falluja está livre do Estado Islâmico, mas ainda espera a paz

Os combates terminaram no grande bastião sunita iraquiano. O exército olha já para Mossul, mas há quem alerte para o trabalho que resta fazer em Falluja.

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Combatentes iraquianos celebram a vitória na "cidade das mesquitas". HAIDAR MOHAMMED ALI/AFP

As forças iraquianas anunciaram a conquista total de Falluja este domingo, eliminando as últimas bolsas de resistência jihadista, passado mais de um mês do início da campanha para reconquistar a cidade e mais de uma semana depois de o primeiro-ministro iraquiano ter reclamado vitória. “Apelo a que todos os iraquianos saiam à rua para celebrar”, disse Haider al-Abadi diante do hospital de Falluja, que nas últimas semanas serviu de comando militar ao Estado Islãmico, esperando que as conquistas militares desviem a atenção da crise política que prolonga há muito. 

Os últimos dias em Falluja foram de limpeza bairro a bairro e este domingo foi a vez de al-Jolan, onde estavam barricados os últimos extremistas. “Não demorou mais de duas horas ao comando antiterrorismo conquistar este bairro e o Daesh [temo depreciativo em árabe para o Estado Islâmico] não disparou sequer uma bala”, afirmou Sabah al-Noman, porta-voz das forças de elite iraquianas. “[Estavam] derrotados mesmo antes de as tropas entrarem”, resumiu, no tom jactante de muitos dos responsáveis que este domingo falavam aos jornalistas.

O fim dos combates em Falluja permite ao exército olhar enfim para Mossul, no extremo Noroeste iraquiano, onde milícias curdas já esperam o começo de uma campanha que pode roubar a segunda cidade do Estado Islâmico e iniciar — em teoria — a derrocada do grupo. A atenção de Abadi já está virada para a grande campanha, mesmo que por enquanto haja pouco que garanta o regresso da paz a Falluja, em permanente tumulto desde que os norte-americanos invadiram o Iraque, terminando décadas de domínio da elite sunita, muita dela com origem nessa "cidade das mesquitas". 

Foi em parte o orgulho sunita que fez de Falluja o cenário dos combates mais sangrentos da ocupação americana, travados contra uma primeira encarnação do Estado Islâmico, que em 2014 voltou a aproveitar o descontentamento sectário para mobilizar a população e reclamar a primeira cidade do seu suposto califado. Ali Mamouri, especialista nas tensões sectárias do Médio Oriente e colunista no portal Al-Monitor, avisa que a história pode voltar a repetir-se. "O Governo não se preparou para a fase de pós-libertação, que em muitos sentidos é mais importante do que a própria libertação", escreve. 

Já existem provas disso. A campanha por Falluja foi minada nas últimas semanas por tensões sectárias causadas pelas milícias xiitas que ajudaram a conquistar os arredores Norte da cidade. Organizações humanitárias acusam-nas de tortura e execuções sumárias de perto de 50 residente sunitas, vistos como facilitadores do domínio jihadista dos últimos dois anos. Abadi prometeu investigar os abusos, mas também ele tem de responder por alegações de tortura às mãos das suas forças governamentais, que, num esforço de triagem entre refugiados e combatentes jihadistas disfarçados, detiveram cerca de 20 mil homens e jovens.

A aparente vitória militar ainda nem se fez sentir na população. À medida que as forças iraquianas avançavam pelas ruas de Falluja, as agências humanitárias pediam ajuda aos governantes iraquianos para dar resposta às dezenas de milhares de pessoas que fugiam da cidade em êxodo, muitas delas debilitadas por seis meses de cerco em que ficaram quase sem acesso a água potável e alimento. O próprio Governo, no limite dos recursos pelos mais de três milhões de deslocados internos, pouco fez para ajudar. E este domingo, na azáfama da vitória, as agências de protecção pediam cautela. 

Bagdad afirma que 90% da cidade está habitável, ao contrário de outros antigos bastiões do Estado Islâmico no Iraque, como Ramadi ou Tikrit, devastados por meses de combates. Mas o Conselho Norueguês para os Refugiados, uma das agências mais importantes no terreno, pede um passo atrás. “Não sabemos simplesmente que zonas são seguras e quais não o são; precisamos de um processo rigoroso de desminagem em zonas residenciais e análises de segurança antes que os civis considerem regressar”, defendeu a agência em comunicado, mesmo admitindo que as condições nos campos são "ainda extremamente duras”.

As Nações Unidas calculam que cerca de 85 mil pessoas fugiram de Falluja desde o início das operações, há pouco mais de um mês. O êxodo levou as agências humanitárias ao limite, esgotando os abrigos para as horas de grande calor ou frio extremo na noite do deserto, por exemplo, ou limitadas a oferecer um mínimo de três litros de água engarrafada por dia. “Fugiram de um pesadelo para entrarem noutro”, reclamava há dias o director do CNR para o Iraque, que há uma semana recebeu 20 milhões de dólares em ajuda humanitária dos Estados Unidos.

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