“Eu pensei que me iam cortar a mão, mas foi apenas um dedo. Fiquei agradecido"

Exilados norte-coreanos revelaram o horror dos campos de trabalho, da tortura e da fome no país. Histórias de três sobreviventes contadas aos investigadores do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

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Um desenho feito por um ex-prisioneiro norte-coreano DR

São dezenas os testemunhos das violações — brutais e sistemáticas — dos direitos humanos na Coreia do Norte reunidos no inquérito das Nações Unidas. Crimes de que o mundo ouve falar há décadas, mas que nunca até agora tinham sido expostos de forma tão detalhada. As 372 páginas do relatório do Conselho dos Direitos Humanos, divulgado na segunda-feira, não deixam dúvidas aos autores: dentro das fronteiras do mais hermético dos países do mundo são cometidos diariamente crimes contra a humanidade, numa escala e com uma brutalidade que não podem continuar impunes.

Abortos e infanticídios

É um dos relatos mais chocantes da desumanidade do regime norte-coreano e da punição que não poupa ninguém, nem os mais indefesos dos seres humanos. Jee Heon-a, de 34 anos, era ainda uma menina quando foi enganada por traficantes que lhe prometeram trabalho e acabaram por levá-la para a China, onde foi vendida, uma e outra vez, em casamento a homens mais velhos. Quando conseguia escapar às malhas dos traficantes, era apanhada pela polícia chinesa, repatriada e presa.  

Na terceira vez que isso aconteceu, em 1999, os guardas descobriram que estava grávida de três meses e comunicaram-lhe que lhe iriam fazer um aborto— para salvaguardar a anunciada supremacia racial a mera suspeita de que o pai da criança não é norte-coreano determina o fim da gravidez. “Deram-me uma injecção, deitaram-me numa mesa e fizeram ali mesmo a intervenção”, conta Jee. Foi enviada para a prisão, mas sofreu hemorragias tão fortes que acabou por ser libertada, conseguindo depois fugir para a Coreia do Sul.

Não era a primeira vez que estava presa, nem a primeira vez que viu o indescritível na prisão. Recorda muitos bebés que nasceram mortos — a fome matava-os na barriga das mães ou morriam no parto. Um dia, contudo, uma companheira deu à luz um nado-vivo. “Estávamos tão curiosas, era a primeira vez que víamos um bebé a nascer”, conta. Mas um guarda ouviu o choro da criança, veio à cela e ordenou à mãe que o afogasse numa tina de água. A mãe implorou pela vida do filho, mas o guarda continuou a espancá-la até que ela cedeu. “O bebé, que tinha acabado de nascer, estava a chorar. A mãe, de mãos a tremer, pegou nele e pô-lo de barriga para baixo na água. O bebé parou de chorar e vimos uma bolha de água a sair da boca dele”.

Nascer na prisão

É o mais conhecido dos exilados norte-coreanos, o único que se sabe ter escapado de um dos chamados “campos de controlo total”, numa jornada retratada no livro Escape from Camp 14.

Foi naquele campo de trabalho escravo, com 150Km2 e de onde ninguém sai vivo, que Shin nasceu, em 1981, filho de dois prisioneiros que os guardas ordenaram que “casassem”. Foi ali que viveu até aos 23 anos, com fome, frio e sem nunca se ter sentido um ser humano. A sua primeira memória, contou à comissão de inquérito, é a da execução de um prisioneiro.

Com 13 anos, denunciou a mãe e o irmão a um guarda por causa de um alegado plano de fuga em troca de uma porção de arroz - foram ambos executados, Shin foi obrigado a assistir e, meses mais tarde, torturaram-no, dependurando-o sobre uma fogueira para que confessasse que também ele queria fugir. “Eu revelei o plano porque as regras do campo nos obrigavam a contar tudo aos guardas [...] Com aquela idade, senti-me muito orgulhoso”.

A fome, contou, é uma arma de domínio nos campos: cada prisioneiro tem direito a apenas 400gr de papa de milho por dia e só consegue sobreviver comendo erva ou os ratos. Os roedores abundam, mas os presos só os podem caçar com autorização dos guardas — o desrespeito pode significar a morte, como aconteceu a uma menina de 7 anos que Shin diz ter sido morta à pancada por ter roubado um punhado de cereais.

Na prisão, Shin perdeu um dedo como castigo por ter deixado cair uma máquina de costura. “Eu pensei que me iam cortar a mão, mas foi apenas um dedo. Fiquei agradecido, muito agradecido ao guarda”.

Fome que mata

Fora dos campos, a falta de alimentos mata a intervalos — o relatório admite que entre 200 mil a três milhões e norte-coreanos tenham morrido nas últimas décadas —, atingindo sobretudo quem é visto como desleal. Jo Jin-hye, exilada nos EUA, conta como a família foi dizimada pela fome nos anos de 1990.

O pai e a mãe foram presos ao regressarem da China, onde tinham ido ilegalmente comprar comida. Kim Jong-il, o segundo líder da dinastia no poder há 60 anos, dera ordens para pôr fim ao contrabando e o pai de Jo foi um dos exemplos — torturado na prisão, acabou por morrer. A mãe estava grávida e meses depois teve o terceiro filho. “A minha avó queria matá-lo, porque a minha mãe estava tão desnutrida que não tinha leite para lhe dar”.

Jo ficou responsável por ele, mas o bebé acabou por morrer à fome, tal como a avó e um irmão mais velho. “Ele morreu nos meu braços porque não tinha o que comer. E como eu andava sempre com ele ao colo ele pensava que eu era a mãe dele. Quando lhe dava água, ele às vezes olhava para mim e sorria”.  

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