Dúvidas sobre a identidade do luso-descendente identificado em vídeo jihadista

Mãe de Mickael dos Santos diz não reconhecer o filho nas imagens da decapitação de 18 soldados sírios. Secreta francesa mantém conclusão, questionada também por especialistas em jihadismo.

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"Não sou eu", lê-se numa conta de Twitter criada em nome de Abu Uthman, nome de guerra de Mickael dos Santos AFP

A mãe do luso-descendente identificado pela procuradoria de Paris como o segundo jihadista francês no vídeo da decapitação de 18 soldados sírios diz não o ter reconhecido nas imagens que lhe foram mostradas. As suas declarações reforçam as dúvidas sobre a participação de Mickael dos Santos no assassínio, posta já em causa por especialistas em jihadismo e negada numa conta do Twitter com o nome de guerra adoptado pelo jovem.

“Não é o meu filho, não o reconheço”, disse Ana dos Santos, portuguesa emigrada em França, numa entrevista na quinta-feira à BFM TV, depois de, na véspera, o Ministério Público ter divulgado um comunicado em que dizia ter confirmado que Mickael dos Santos era um dos radicais que apareciam de cara destapada no vídeo divulgado no domingo, segurando os prisioneiros prestes a serem executados.

A mãe do luso-descendente, de 22 anos, confirma que o filho partiu para a Síria no Verão de 2013 e reconhece-o numa fotografia retirada de uma conta de Twitter criada em nome de Abu Uthman, o nome que o jovem usa nas redes sociais. Mas garante que, quando prestou declarações na Direcção-Geral de Segurança Interna (DGSI), disse aos investigadores que não é ele quem aparece no vídeo. “Este tem um rosto alongado e um olhar que não é o dele”, explicou Ana dos Santos, acrescentando que a pessoa que surge no vídeo “tem os olhos escuros e os dele são castanhos-esverdeados”. Revela que os investigadores a questionaram uma e outra vez, ao ponto de começar a ter dúvidas, mas acrescenta: “Quanto mais olho para a fotografia, mais certezas tenho de que não é ele.”

Uma fonte dos serviços de informação disse ao jornal Le Monde que os investigadores nunca afirmaram que a mãe tinha reconhecido o filho e garante que a identificação não se baseou apenas no reconhecimento facial, “mas num conjunto de elementos precisos, como o que se conhece das suas actividades na Síria”. O diário francês adianta, por isso, que os serviços secretos não pretendem recuar nas suas conclusões “salvo um muito improvável golpe de teatro”. 

No entanto, ainda antes da entrevista da mãe à BFM, numa nova conta no Twitter em nome de Abu Uthman – a sexta a ser criada, depois de todas as anteriores terem sido desactivadas, diz o Le Monde –, pode ler-se: “Anuncio claramente que não sou eu quem aparece no vídeo”. Em outros dois tweets, o autor critica a imprensa e os serviços secretos franceses e diz que a sua família negou que a pessoa em causa fosse ele.

David Thomson, jornalista da Radio France Internacional que há anos segue o fenómeno do jihadismo, tinha já posto em causa a conclusão dos serviços secretos e, em declarações ao Le Monde, diz ter confirmado que a nova conta do Twitter pertence a Mickael dos Santos. O repórter explicou que está há algum tempo em contacto com o luso-descendente e tinha combinado com ele uma “pergunta secreta” para conseguir autentificar as sucessivas contas que ele foi criando.

O desmentido “não é mais do que a palavra dele contra a da procuradoria, mas reforça as minhas dúvidas sobre a sua presença neste vídeo”, disse Thomson, explicando que contactou outros cinco franceses nas fileiras do Estado Islâmico e que todos lhe disseram que não é ele quem aparece nas imagens. “Dizem que é um sírio, um tal Abu Umarayn, o que bate certo com a pronúncia árabe perfeita da pessoa que fala no vídeo”.

A família de Mickael diz que o jovem começou a aprender árabe na altura da sua conversão, o que, para o investigador Romain Caillet, não é compatível com o sotaque sírio do jihadista filmado. “Salvo alguma montagem, não é claramente Mickael dos Santos quem fala naquele vídeo”, escreveu o especialista no Twitter.

Conversão relâmpago

Foi na Primavera de 2009 que o luso-descendente, filho mais velho de Artur e Ana dos Santos – ele operário, ela empregada de limpeza –, se converteu ao islão, recordou ao Le Monde uma antiga namorada, que o jornal identifica pelo pseudónimo de Elizabeth. Conheceram-se no ano anterior na escola profissional que ambos frequentavam, tinha ele 16 anos e era “um católico praticante, apaixonado pelo futebol e a música, um bom aluno que cresceu numa família equilibrada”.

Em Fevereiro, iniciou um estágio numa empresa juntamente com um colega muçulmano, recorda a ex-namorada, dizendo que foi nessa altura que começou a falar do Corão, cada vez com mais frequência. “Um dia, em Maio, disse-me que queria converter-se. Pediu-me para usar o véu e deixar a escola. Foi quando nos separámos”, diz Elizabeth, assegurando que Mickael se “radicalizou de um golpe”.

Maria dos Santos, a avó de Mickael, que saiu de Portugal aos 25 anos para ir trabalhar nas limpezas em França, confirmou ao jornal a mudança radical do neto, que, por essa altura, deixou crescer a barba e começou a vestir túnicas. “Não lhe dizíamos nada, para não o irritar. Quando a mãe falava com ele sobre a conversão, ele enervava-se, queria que ela também se convertesse e deixou de falar com o pai por causa disso”, diz a emigrante portuguesa, de 71 anos. O Le Monde diz que Mickael passou a integrar um grupo muito activo de estudantes muçulmanos, que faltava às aulas para rezar, acabando por abandonar a escola pouco antes dos exames finais.

Mas foi só quatro anos mais tarde, em Agosto de 2013, que deixou a casa da família, um modesto apartamento em Champigny-sur-Marne, às portas de Paris. “Era para irmos de férias a Portugal, como todos os Verões, com os pais e os dois irmãos, mas ele não quis ir. Ficou sozinho em Champigny. Foi já lá que soubemos que ele tinha ido para a Síria”, diz a avó, que foi surpreendida quando, na terça-feira, as televisões começaram a passar a fotografia do neto, identificando-o como um dos carrascos dos soldados sírios. Antes disso, já estava sob o radar das secretas, alertadas pelas fotografias e os apelos à jihad que Mickael publicou a partir da Síria. “Ele era católico, fez a catequese, não sei como conseguiram dar-lhe a volta à cabeça”, desabafa a portuguesa.

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