As complexidades do TTIP

A 12 de Fevereiro de 2013, no tradicional discurso sobre o Estado da União proferido no Congresso Americano, Barack Obama anunciou oficialmente a abertura de negociações visando a concretização de um "Partenariado Transatlântico de Comércio e Investimento". Iniciava-se assim o percurso histórico do famigerado TTIP (das suas iniciais em inglês) que mereceu desde o início apreciações completamente antagónicas.

David Cameron, por exemplo, referiu-se-lhe nos seguintes termos: "estamos a falar do que poderá ser o maior acordo comercial de toda a história, um acordo que poderá vir a ter um impacto mais importante do que o resultante do conjunto de todos os outros acordos actualmente em discussão". Já um deputado europeu da família ecologista, Yannick Jadot, exprimia uma visão bem diferente: a de que este tratado constitui uma diluição do projecto específico europeu. A discussão não poderia ter começado de forma mais apaixonada − para uns o TTIP significaria a consagração do princípio da liberdade comercial aplicada a um mercado constituído por 820 milhões de pessoas, para outros representaria a completa neutralização da dimensão social tão característica do modelo económico europeu. A realidade é porém um pouco mais complexa e por isso pouco permeável a representações redutoras, por muita capacidade de sedução imediata que elas contenham.

 A ideia da celebração de um acordo desta natureza não surgiu do nada. Logo após a queda do Muro de Berlim foi aprovada uma declaração transatlântica celebrada entre a União Europeia, os Estados Unidos e o Canadá que apontava no sentido do reforço do relacionamento económico entre estas partes. Tal não era de estranhar dada a convicção então dominante de que a solidariedade transatlântica havia sido decisiva para a desagregação do bloco soviético e a correspondente vitória do bloco ocidental. Acreditava-se mesmo que dessa aliança resultaria uma projecção universal dos valores da democracia representativa, da liberdade e da economia de mercado, chegando mesmo alguns a formular a tese do “fim da história” em versão capitalista. Como se veio a verificar, essas previsões eram um tanto ou quanto exageradas.

 O mundo pós-Guerra Fria, que num primeiro momento pareceu evoluir no sentido da afirmação de uma superioridade unipolar norte-americana, acabou por ficar caracterizado pelo surgimento dos países emergentes com a correspondente modificação da ordem económica internacional. Perante esta nova realidade desenvolveu-se rapidamente a expectativa de um reforço do multilateralismo como modelo adequado de regulação das relações internacionais, fosse no plano político, fosse no plano económico e comercial; em ambos os domínios essa expectativa saiu em grande parte gorada. Não importando agora a apreciação desta questão no plano estritamente político concentremo-nos na abordagem da mesma no domínio comercial. Face ao surgimento de novos grandes actores internacionais, de entre os quais sobressai naturalmente a China, assistiu-se na fase de transição do século XX para o século XXI a uma tentativa de promover o multilateralismo comercial, o que conduziu à criação da Organização Mundial de Comércio em 1995, na cimeira de Marraquexe, com a atribuição a esta nova entidade de importantes responsabilidades na regulação e resolução de hipotéticos conflitos decorrentes de uma acrescida liberalização do comércio internacional. Com a entrada da China, ocorrida no ano de 2001, aumentaram simultaneamente as expectativas e os problemas. A verdade é que desde então vários foram os países, a começar pelos Estados Unidos, que se foram progressivamente desinteressando do multilateralismo comercial, passando a valorizar acordos de natureza estritamente bilateral. A União Europeia, confrontada com o impasse verificado na chamada Ronda de Doha, começou também a privilegiar o bilateralismo no relacionamento comercial com outras regiões e países do mundo. Essa mudança operou-se sem que se desenvolvesse simultaneamente uma reflexão profunda acerca das consequências que daí poderiam advir, quer para a sanidade da ordem internacional em geral, quer para a salvaguarda dos interesses europeus em particular. A passagem do multilateralismo para o bilateralismo decorreu sem grandes sobressaltos e, diga-se, com escassa orientação política.

Conscientes desta nova realidade e dispostos a utilizar as suas vantagens geopolíticas, os Estados Unidos lançaram-se na negociação praticamente simultânea de dois grandes acordos de livre comércio: este que temos vindo a apreciar e um outro, o TPP (Trans-Pacific Partenership), envolvendo também o México, o Canadá e mais nove países da esfera asiática e do Pacífico. Um dos objectivos subjacentes a esta opção − e por certo dos não menos relevantes − foi o de limitar a margem de manobra chinesa no plano das relações comerciais internacionais. As autoridades políticas europeias (Comissão e a generalidade dos vários governos nacionais) responderam afirmativamente a este repto norte-americano. Não poderiam, na minha opinião, ter agido de modo diferente, dado o comportamento adoptado nos últimos trinta anos e tendo em consideração o novo contexto internacional. A justificação política apresentada, baseada na ideia de revalorização do espaço atlântico e de promoção de valores conjuntos configuradores de um específico modelo ocidental, dispõe de inequívoca fundamentação e de um elevado potencial de mobilização da opinião pública. É claro que tal não obsta à manifestação de posições críticas alicerçadas sobretudo no temor da progressiva americanização das sociedades europeias. Os sectores mais críticos chamam a atenção para o risco de deterioração do estado social e de absorção de um estilo de organização política e económica pouco preocupado com o chamado “princípio de precaução”, até aqui dominante no espaço europeu. Por isso mesmo alguns detractores acenam com o risco dos organismos geneticamente modificados, da carne com hormonas e outras situações similares reveladoras de uma degradação do nível de exigência sanitária e ambiental. Isto para já não falar dos receios existentes na área laboral.

A questão que verdadeiramente se põe é a de saber se este acordo comercial pode ou não contribuir para uma melhor regulação da economia internacional e para uma mais eficiente salvaguarda dos valores inspiradores do projecto político europeu. Isto é, falhada a via multilateral, coloca-se a questão de saber se um entendimento entre a União Europeia e os Estados Unidos da América contribui ou não para um melhor enquadramento da globalização, algo sistematicamente reclamado no espaço político europeu. A resposta parece-me ser claramente no sentido afirmativo. Claro que isso dependerá em grande parte da forma como vai decorrer o processo negocial em concreto. Nesse sentido, o consenso que parece estar a forjar-se em torno da adopção de um mecanismo de arbitragem de conflitos de natureza pública constitui um bom indício. Tal mecanismo configura aliás um dos temas em que mais será posta à prova a capacidade de compromisso entre o centro-direita e o centro-esquerda europeus. Esperemos que nenhum tipo de sectarismo irresponsável venha prejudicar este tão necessário espírito de compromisso. Disso também depende a força da capacidade negocial europeia. É bom não perder isto de vista.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários