Análise: Eleições livres vão retirar força à Irmandade Muçulmana

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O líder da Irmandade Muçulmana prefere manter a organização na sombra Amr Abdallah Dalsh/Reuters

O maior movimento de oposição no Egipto, até agora ilegal mas tolerado pelo regime, ambiciona ser parte activa da vida política pós-Mubarak. Na revolução contra o “raïs” optou por um perfil discreto para provar que não é uma ameaça. Num clima de liberdade, com outros partidos em liça, sabe que não conseguirá a maioria no Parlamento.

Com uma parte do mundo temerosa de que o Egipto venha a ser governado pela “Ikhwan-al-Muslimun” (Irmandade Muçulmana), escreveu Ross Douthat num artigo recente no “New York Times”, os norte-americanos “deveriam reflectir nisto: é bem possível que se Mubarak não tivesse governado como um ditador nos últimos 30 anos o World Trade Center ainda estivesse de pé.”

Porquê, se Mubarak tem sido “um fiel aliado dos Estados Unidos, parceiro nos esforços de contraterrorismo e inimigo dos radicais islamistas”? Porque, como lembra Douthat, citando o autor do livro “Torres do Desassossego”, Lawrence Wright, “a tragédia do 11 de Setembro nasceu nas prisões do Egipto”. Foi daqui que saíram homens como Ayman al-Zawahiri, “braço direito” de Osama bin Laden, o criador da Al-Qaeda, a rede que, por sua vez, atraiu jovens como Mohamed Atta, um dos suicidas que fez destruir as Torres Gémeas em 2001.

Apesar das prisões, deportações e execuções de muitos dos seus membros, a Ikhwan não foi destruída – nem por Mubarak, nem antes por Nasser nem pelo rei Farouk, que a viu nascer em 1928, e cujo fundador, Hasan al-Banna, mandou assassinar em 1949. Hoje, a Irmandade está nas ruas ao lado dos milhares e milhares de manifestantes que exigem a demissão do actual Presidente, reclamando uma participação política activa.

Enquanto os analistas se dividem sobre a Irmandade foi ou não apanhada desprevenida pela amplitude da revolta popular – uns dizem que sim; outros afirmam que assumiu propositadamente um perfil discreto –, certo é que o movimento tem revelado um grande pragmatismo, consciente de que ainda continua a ser visto como uma ameaça, regional e internacional.

Só quatro dias depois do início da sublevação, a 25 de Janeiro, a confraria liderada pelo veterinário Mohamed Badie, 66 anos, exibiu nas ruas os seus milhares de fiéis – mais em Alexandria, o seu reduto, do que no Cairo. Inicialmente, optou por celebrar o Dia Nacional da Polícia – instituição odiada pelos egípcios, o que levou alguns a comentar que estava “desligada da realidade”.

Esta semana, um dos dirigentes religiosos da Irmandade, Kamel el-Helbawy, revelou à agência Reuters que um “sucessor aceitável” para Mubarak seria Sami Annan, actual chefe de Estado-Maior das Forças Armadas. “Tem uma boa reputação e não está envolvido em corrupção”, justificou sem mais pormenores. No domingo passado, a Ikhwan anunciara também que dava o seu apoio ao antigo director-geral da Agência Internacional de Energia Atómica Mohammed ElBaradei, para coordenar as diversas forças da oposição (seculares e religiosas) e chefiar um governo de transição.

Um grupo multifacetado

Khalil Alanani, investigador na School of Government and International Affairs da Durham University, no Reino Unido, e um estudioso da Irmandade Muçulmana, disse ao PÚBLICO, por “e-mail”, que não é oficial o apoio da Ikhwan a Helbawy. A única certeza acrescentou, é que, neste momento, “há uma ‘Ikhwanfobia’ no Ocidente alimentada pelo regime de Mubarak, que desse modo conseguiu criar pavor, uma forma de chantagem para reter o poder.”

“A Irmandade”, sublinha Alanani, “é um movimento multifacetado que não pode ser travado. É uma organização social com uma ideologia religiosa e política. Tem uma estrutura bem organizada e uma forte rede social que oferece serviços básicos, como saúde e educação. Atrai a classe média e a baixa. É um movimento moderado, não violento, pacífico.”

“Não é verdade que a Irmandade tenha inspirado grupos terroristas pelo mundo”, vinca Alanani. “Há uma percepção totalmente enganadora no Ocidente que muitos egípcios não partilham. A Ikhwan não é um movimento de grandes proporções, está apenas bem organizado. Mubarak foi esperto ao permitir que a Irmandade chegasse aos 20 por cento de votos, porque assim assustou o Ocidente e manteve o apoio ocidental para se manter na presidência.”

O académico egípcio também não acredita que a Irmandade venha a sequestrar a revolução, nem sequer que venha a participar num governo de transição. “O que a Ikhwan precisa é de ter reconhecimento político, de ser um partido político. Além disso, em eleições livres e justas, a Irmandade jamais conseguirá uma maioria absoluta no parlamento. É verdade que obterá uma presença significativa – mas não a maioria –, já que o cenário político vai permitir que outros partidos cresçam e sejam rivais da Irmandade.”

Alanani aconselha os Estados Unidos e Israel a não interferirem nas escolhas dos egípcios e abandonar a tentação de comparar os protestos do Cairo ao Suez com a revolução islâmica de 1979 em Teerão. “Por que olham para o modelo do Irão e não da Turquia”?, interroga-se, aludindo ao Estado secular governado pelo Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), pós-islamista, de Recep Tayyip Erdogan. “O diálogo entre a América e a Irmandade é possível, mas só se ambas as partes construírem pontes que eliminem a desconfiança mútua.”

Movimento patriótico

Um outro analista, Joshua Stacher, investigador na Univeridade de Kent (Ohio, EUA), disse ao diário “Le Monde”, de Paris: “Os Irmãos Muçulmanos sabem que se ocupassem o primeiro plano nas manifestações, as potências ocidentais dariam luz verde ao poder para amordaçar a contestação. É preciso colocar o movimento no seu contexto: trata-se de manifestações patrióticas contra um regime considerado cliente dos Estados Unidos, que recebe anualmente 1.500 milhões de dólares de ajuda – e os Irmãos Muçulmanos, como um sistema político com capacidade de mobilização, integram esse movimento patriótico.”

Stacher admite que a Irmandade “fez mal os cálculos” e menorizou a dimensão dos protestos, mas agora que “sente haver uma possibilidade real de fazer cair Mubarak, já está disponível” para se juntar aos revoltosos. “Não quer, contudo, ser líder da contestação, porque a sua presença serviria apenas para uma repressão acrescida.”

Aceitará a Ikhwan cooperar com a restante oposição? Stacher não tem dúvidas quanto a isso: “Sim, se for aprovada uma Constituição que não valorize uns [grupos políticos] mais do que outros. A Irmandade pode participar pacificamente em eleições, ganhá-las pacificamente e perdê-las pacificamente.” Por enquanto, não parece interessada em apresentar um candidato presidencial nem em chefiar um governo, porque com isso arriscar-se-ia a um “isolamento diplomático”. Eles querem ser parte activa da vida política mas “não prejudicar o estatuto internacional do Egipto”.

Não é difícil esse equilíbrio porque, desde a sua criação, a Irmandade foi a única força da oposição que o regime consentiu, apesar de sanguinariamente reprimida. É comandada desde 2010 por uma ala conservadora porque depois da sua surpreendente vitória eleitoral em 2005 (conquistou 88 lugares, um quinto do Parlamento), a jovem guarda foi suprimida. Nas legislativas seguintes, supostamente fraudulentas, já não conseguiu representação.

O martírio de Hasan al-Banna

Tem sido assim a história da Ikhwan, nascida para responder à divisão dos territórios árabes em esferas de influência das potências europeias, após a abolição do califado na Turquia, e à crescente ocidentalização da cultura muçulmana. A Irmandade promovia a independência e a filantropia, mas sobretudo um revivalismo religioso. Ajudou a recolher fundos e a mobilizar voluntários para combater os sionistas na Palestina (o Hamas, na Faixa de Gaza, é um dos seus discípulos – tal como foi Yasser Arafat, o defunto chefe histórico da Fatah e OLP). A Ikhwan foi ainda crucial na luta contra o imperialismo britânico e para a queda da monarquia. Os seus líderes – designadamente o ideólogo, Sayyid Qutb – foram figuras influentes do século XX.

Quando os Oficiais Livres, de Gamal Abdel Nasser, derrubaram o rei Farouk e instauraram uma república, a Irmandade alinhou com os novos dirigentes, mas quando percebeu que o seu objectivo não era estabelecer uma teocracia mas um regime socialista pan-árabe, rapidamente se tornou inimiga. Depois da morte de Nasser (que enforcou Qutb), o seu sucessor Anwar el-Sadat tentou reaproximar-se da Irmandade, mas recusou apoiá-la quando esta solicitou estatuto legal, nos anos 1970.

A partir dos anos 1980, a Irmandade renegou a violência (o que gerou cisões e a emergência de grupos dissidentes radicais), aceitando a democracia e o pluralismo. A Irmandade permanece incontornável, graças às suas acções sociais que substituíram o Estado, proprietária de escolas, clínicas e até bancos, mas o apagado Badie, presente líder, nada tem a ver com Al-Banna, o fundador, que aos 12 anos já participava activamente nas acções armadas contra o domínio colonial britânico.

O destino de Al-Banna foi mais trágico do que será, provavelmente, o de Mubarak (que terá à sua espera um exílio dourado): a 12 de Fevereiro de 1949, o supremo guia da Ikhwan foi alvejado a tiro no Cairo. Gravemente ferido com sete balas, teve uma morte lenta no hospital – Farouk deu ordem para que não o tratassem.

Texto actualizado às 15h205 de 3 de Fevereiro de 2011
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