PORTOguês, o lado B da língua para inglês ler

Foi lançado esta semana o dicionário de PORTOguês-inglês, que revela aos estrangeiros a forma peculiar, e por vezes grotesca, como os portuenses se exprimem.

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“O turista estrangeiro ficará a saber que o PORTOguês é um verdadeiro compêndio médico. Não deve haver doença que não tenha uma tradução local” Paulo Pimenta
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Manuel Roberto

Se a língua portuguesa é muito traiçoeira, como dizia o Herman, o PORTOguês é ainda mais escorregadio. Ou, para ser mais franco, mais escatológico, da ordem do grotesco, tão fundo se aventura, para dizer o mundo de todos os dias. Por isso, o Dicionário de PORTOguês-Inglês que João Carlos Brito compilou, com Ana Cruz e Cristina Vieira Caldas a ajudá-lo na tradução, é um instrumento de iniciação, para estrangeiros, a uma forma de usar a língua - e outras partes mais baixas do corpo - que pode soar algo mal-educada a alguns leitores pouco familiarizados com as ruas do Porto, e o à-vontade de muitos dos seus habitantes.

Entre um falante do Porto (e da região) e outro de Lisboa há aquelas diferenças simples, que todos nos habituamos a distinguir. Por cá comem-se iscas e bolinhos de bacalhau, em vez de patiniscas e pastéis do dito, come-se um molete em vez de um papo-seco, bebe-se cimbalino como quem toma uma bica, pede-se um pingo em vez de um garoto e um fino em vez de uma imperial. A cultura pop local – e o caso do merchandising produzido pela empresa IllustrART é um bom exemplo disso – tem explorado, nos últimos anos, estes localismos linguísticos, como forma de expressão de uma identidade “tripeira”, mostrando-a também aos turistas.

O regresso de João Carlos Brito ao PORTOguês – no qual se iniciou com muito sucesso com Heróis à Moda do Porto, de 2010, o mesmo ano em que Alfredo Mendes lançava o seu Porto Naçom de Falares – faz-se, também, para estrangeiro ler e aprender. Com a novidade de procurar traduções para um inglês literal, um inglês corrente e outras que exploram, também elas, as partes baixas do nosso quotidiano, dizendo, em múltiplos anglo-calões, coisas normais a partir do indizível.

Não foi tarefa fácil, a de Ana Cruz e Cristina Vieira Caldas. A tradução literal pode parecer, e é, uma brincadeira – ninguém vai dizer a um inglês quit the shop, “desampara-me a loja”, para o mandar embora de um sítio qualquer. E se a tradução para o inglês comum não passa de mero osso de ofício de quem sabe da poda, já a procura de expressões com idêntico significado nos múltiplos calões, ou slang, esbarrou em vários obstáculos. Desampara-me a loja pode ser algo como naff off, bugger off ou sling your hook. Mas para outras expressões, como “encostar às boxes” (lesionar-se durante muito tempo, no futebol), eles não chegaram lá.

Por muitas ajudas que tivessem lá fora, de fontes portuguesas ou anglo-saxónicas, algumas foram as expressões sem tradução, e a outras só lá chegaram com uma grande dose de imaginação. É o caso de “chá de bico” – portuense “eufemismo” para um clister. Nas ruas e nos becos não encontraram paralelo, mas entre os médicos ingleses, os marotos, há quem chame a isto um 3H enema, de High, Hot and a Hell of a Lot. Não vamos re-traduzir, que já há muita malícia nos parágrafos a seguir. Outra, como “bater no Siska” não tem mesmo tradução, visto que o referente destas críticas era um antigo treinador do FCP, da década de 1930 e 1940. A não ser que entretanto se invente algo, por lá, com o nosso Mourinho, que se farta de levar, mas da imprensa.

Já que andamos numa de “pancada”, todos sabemos que lobsters são lagostas. Mas por cá dão-se outro tipo de “lagostas” e, se alguém oferecer a outra face, ainda leva uma “bolacha”, uma “lamparina”, ou “lapada”, múltiplas e dolorosas expressões para uma chapada na cara, que, resumidamente, pode ser uma box on the ear em inglês, ou seja uma caixa na orelha, vá-se lá saber porquê. O melhor é nem perguntar. Porque se eles forem muito susceptíveis, às vezes há “mosquitos por cordas”, um argy-bargy, e alguém mais “passado dos carretos”, perturbado, que é o mesmo que pissed off, ainda se mete em cenas de pancadaria que obrigam à intervenção da polícia.

Se não sabia, explicamos-lhe que, por lá, a polícia chegaria num cherry topper (algo que terá que ver com a cereja luminosa no meio do tejadilho), mas que por cá apareceria, há uns anos, num “Nívea”, os antigos carros azuis escuros e brancos, e ainda levaria alguém “a passar férias em Custóias”, freguesia de Matosinhos famosa pelo seu estabelecimento prisional. Expressão para a qual os autores não encontraram um equivalente geográfico nas terras de Sua Majestade. 

O sexo na ponta da língua
Este subtítulo não tem qualquer segundo ou terceiro sentido. A sexualidade é, como outros temas do interdito – e envolvendo as parte baixas, moralmente imundas – tema de eleição de qualquer calão, seja ele de que porto for. Aqui por este Porto (e muito pelas redondezas) se uma mulher é uma “ardida” (fogosa, ou up for it), é bem provável que ande “enrodilhada” (enroscada) com alguém, que esse alguém “ande a roê-la”, deixando outro pretendente “de beiças” (amuado) por não conseguir “mudar o óleo” – e aqui eles inventaram a expressão “How’s your father”, bem mais desconcertante do que a mecânica metáfora portuense para relação sexual.  

Mas o melhor é parar de falar de sexo, para não chegarmos à parte do amendoim (o clitóris, que para os ingleses é um grão, bean), dos grelos, das alheiras com bigode, ananases e outras partes do corpo assim travestidas, numa linguagem que nem só os próprios compreendem, mas que pode confundir um turista na hora de ler um menu num restaurante da cidade. É que se uma pessoa vai jantar fora e ainda tem de “arrotar” (pagar a conta, ou tossir, to cough, em inglês), é bom que saiba com exactidão o que vai pedir, para não andar às aranhas, up the pole, a pedir algo que não consta do cardápio.

Up the pole significa algo parecido com ficar pendurado que, por cá, é o mesmo que ficar portuensemente, “encaralhado”, palavra cujo sentido negativo advém da má vontade com que os marinheiros, gentes dos portos, encaravam a subida ao cesto da gávea dos navios, o verdadeiro e original caralho, transmutado em órgão másculo de múltiplos nomes. O lado impudico do linguajar portuense é tão forte que, mesmo uma coisa simples como não fazer nada, pode dizer-se como andar “a coçar o cu pelas esquinas” – sitting on one’s hands – ou  “a laurear a pevide”, to get some ass, que é como quem diz, a dar um passeio por aí.

Para tudo há remédio. Se há expressões e palavras que é melhor não dizer, para não ofender espíritos mais sensíveis, o portuense arranjou uns substitutos mais suaves – ou, melhor dito, manhosos, tal a homofonia evidente com os originais. É caso de “vai-te cozer” ou o bem famoso carago, que o portista Estebes e o boneco do antigo autarca local e ex-ministro Fernando Gomes no Contra-Informação imortalizaram como o must do falar portuense.  

Mas, na maior parte das vezes, não há espaço para este PORTOguês-suave. Se alguém lhe chamar um calhau com dois olhos, por atravessar fora da passadeira, acredite, isso é insulto. E provavelmente um impulso, também, como se diria num anúncio perfumado. Um inglês chamar-lhe-á bird-brain, cabeça de pássaro, entre muitas outras coisas a que o poupamos para arranjar espaço para outras expressões como casca grossa, cheeky, ou cepo, pig-ignorant, que não anda muito longe, no significado, do mais famoso destes insultos à moda do Porto: morcão (lê-se morcom). Por tudo isto, pense duas vezes, antes de provocar um nativo.  

Um linguajar cheio de saúde
Com este livro, o turista estrangeiro ficará a saber também que o PORTOguês é um verdadeiro compêndio médico. Não deve haver doença que não tenha uma tradução local. Um tipo pálido, por exemplo, pode estar “amarelo dos peidos”, looking liked Death warmed up (ou a chamar a morte, em tradução livre). Se o problema for uma simples diarreia, dir-se-á que está a “pintar de pistola”, coisa parecida, em inglês, com problemas na porta das traseiras (Back door trots). Se, pelo contrário, a maleita for uma prisão de ventre, dir-se-á que não consegue “arrear a giga”, expressão bem menos escatológica do que a inglesa: to release the chocolate hostage. Como se vê, nisto de ir corpo abaixo, quando querem eles conseguem ser piores…

É fácil de acreditar que este dicionário de PORTOguês-inglês foi uma diversão do carago para o trio de autores. Que ficou a saber que os ingleses são mesmo muito cruéis, pois os nossos velhotes, os “cotas”, são ladrões de oxigénio, oxigen thieves, lá no calão da ilha. Em apenas um ano, o tempo que demorou a fazer este dicionário, eles aprenderam tanto do submundo inglês quanto o que já sabiam do submundo, entretanto elevado aos píncaros, do português falado na Ribeira, no Porto e, na verdade, muito no Norte em geral.

Como assinala João Carlos Brito, a língua é um fenómeno vivo, e tem essa capacidade de se mover por aí, umas vezes sobrepondo-se à norma, outras deixando-se vencer por outros calões. Há tótil de tempo que os tripeiros deixaram que a maior parte das pessoas, por cá, trocasse “tótil” por “bué”. Já “muito” é palavra a que se recorre tão pouco que quase parece um calão. E talvez um dia seja esse o seu lugar, num dicionário, ainda que isso possa deixar algum linguista desolado, ou, perdão, como aqui se diria, “descolhoado”, gutted, um grotesco sinónimo de descoroçoado que é capaz de fazer corar qualquer um.

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