“Estamos para aqui esquecidos”

Há os que querem muito sair e há os que gostariam de não conhecer mais nenhum lugar. Se os moradores do Bairro do Aleixo estão divididos quanto ao futuro, são unânimes no presente. A degradação deste bairro do Porto está a chegar ao limite do suportável.

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Torre 1 - piso 13 - Lidia Mesquita
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Torre 1
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Torre 1
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Torre 1 - piso 9 - Antonio Mesquita (toma conta do irmao, luís, 52 anos, deficiente)
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torre 1 - Caudia Cristina Pereira e Lidia Mesquita
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Torre 1
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Torre 1
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Torre 1 - piso 12 - Generosa Silva
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Torre 1 - piso 12 - Generosa Silva
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Torre 2
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Torre 2 - piso 1 Alda Rocha
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torre 3 - piso 12 Maria Silva (”Neta”)
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Torre 2
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Torre 3
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Torre 3
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Torre 3

“Não temos nada a esconder”, diz Lídia Mesquita, costureira. “Finalmente alguém quer entrar na Torre 1. Olhe que da Câmara do Porto ninguém aqui veio pôr os pés”, acrescenta Cláudia Cristina Pereira, empregada de limpeza. Ambas são vizinhas no Bairro do Aleixo e acederam ao pedido do PÚBLICO de abrir as portas das suas casas e mostrar o esquecimento a que dizem ter sido votadas.

Moram no Aleixo há quarenta anos. Têm aviso de marcha - isto é, a noticia de que a casa iria abaixo - há mais de sete, desde que o anterior presidente da Câmara, Rui Rio, avisou que ia implodir o bairro em 2008. Já assistiram a duas demolições. A Torre 5, em Dezembro de 2011. A Torre 4, em Março de 2013. E há já dois anos que não tem noticias de mais nada. “Estamos para aqui esquecidos. As coisas avariam, ninguém compõe. Chove nas casas, há infiltrações por todo o lado. E onde não mora ninguém, pior ainda. Há lixo por todo a parte, ninguém limpa nada”, acusa Lídia.

O Aleixo é, hoje em dia, uma espécie de submundo. Para aceder ao submundo vai-se de escadas - que numa grande parte dos dias não há elevadores a funcionar. A população envelhecida que ali criou raízes depois de ter sido arrancada da Ribeira, há já 40 anos, convive buracos meios (que há tantos tapumes e buracos como há paredes habitadas) com a população flutuante que ali vem, se não abastecer-se, pelo menos consumir. Cláudia Cristina vai avisando: “ Espero que não tenha medo de andar de elevador. Só o pequenino é que está a funcionar, e pára muitas vezes a meio. [O elevador monta cargas, que ainda funciona nas outras torres, já não existe nesta, há muito] Se calha de parar num andar que não tem porta, olhe… não sei o que nos pode acontecer”. Ainda estamos a dirigir-nos à primeira torre, e a descrição parece inverosímil. “O elevador só pára no piso 1, no 6, no 9 e no 10. Nos outros pisos não há portas, foram arrancadas, há buracos tapados com tijolos”, descreve Lídia. 

Foram os elevadores do Aleixo, e o filme de Luís Vieira Campos com guião de Valter Hugo Mãe, que nos impeliu a fazer o pedido de visita. Queríamos perceber até onde é que a ficção de Bicicleta coincide com a realidade do Aleixo. 

A visita foi feita uns dias antes da Câmara do Porto ter anunciado aquele que espera ser o princípio do fim do impasse que os 107 agregados que habitam o Bairro estão votados há quase dois anos, após a falência do Fundo Imobiliário com quem Rui Rio contratou a gestão do processo. Regressamos ao bairro uns dias depois, já com a proposta de solução aprovada na Câmara, e pouca coisa mudou. Muito menos o estado de espírito. “Continuamos aqui perdidos, sem saber o que fazer. Se vamos ficar muito tempo ou pouco, sem saber para onde vamos. Estamos como os tolos, no meio da ponte”, critica Alda Rocha, moradora na Torre 2, num “T4 que é um palácio”.  “Para quem veio da Ribeira (com sete filhos nados e um par de géneos na barriga) e tinha de tirar a mesa para por a cama onde os filhos iam dormir, isto aqui é um palácio”, repete. Entretanto já lhe morreram três filhos. Dois para a droga. Um dos gémeos “anda no vício”, vai dormir a casa de vez em quando. O outro gémeo, com mulher e filhos já consegui uma “casa nova” e foi realojado na Pasteleira Velha. “Paga pouco de renda, mas aquelas casas não têm jeito nenhum. Para casas daquelas, eu não quero sair daqui”, explica.

Seguimos para a Torre 1. Lídia vai levar-nos ao  13.º andar, e ao seu T2 com vista para o rio. E explica que só usa o elevador quando está acompanhada. E que é quase sempre Maria Jesus Campos, que mora no 10.º andar [e que está de baixa há uns anos, depois de ter sido submetida a uma cirurgia] que faz o favor de lhe fazer companhia.  Maria veio criança para o Aleixo, vivia com a mãe (que teve 13 filhos) no primeiro andar. Quando “se juntou” foi morar para a despensa, na cave do prédio, e esteve 13 anos sem água nem luz. Em 1995 teve direito a um T2 no 10º, onde ainda vive com o filho. “A primeira vez que me falaram que me arranjavam casa noutro sítio foi em 2000. Ainda aqui estou, e pelos vistos, estarei”, diz. Cristina mora no 11.º, e diz que não prefere não pensar muito no que pode correr mal com os elevadores. Fica bem mais chateada por quase todos os dias ter de pedir aos rapazes que lhe subam com os sacos das compras a troco de uma moeda. 

Chegamos à entrada, há uma pequena multidão que se afasta, viram costas, dão passagem. Deixamos o elevador para a descida, e começamos a subir as escadas. Em todos os andares há apartamentos fechados, com tijolos em vez de portas. E paredes sujas. Em muitos patamares há pedaços de madeira levantados no chão, a improvisar cancelas que dificultam acesso aos patamares. Helena Azevedo, moradora no 6.º, aparece atrás de uma delas, e explica que serve para impedir os cães de lhe irem sujar a porta. Continuamos a subida, e continuamos a ver buracos em vez de vidros, tijolos em vez de portas. E a ouvir relatos de toxicodependentes empoleirados em alturas perigosas para encontrar abrigo em alguma dessas casas devolutas tijolo. “Sim, já houve incêndios lá dentro, apanhámos um susto de morte”, conta Maria de Jesus. No 9.º andar, o irmão de Lídia, António Mesquita, abre a porta a um T4. É o único que fica durante o dia em casa, a tomar conta de um irmão de 52 anos, em estado vegetativo desde os 8 meses de idade. “Quando temos de o levar ao hospital é um problema. Tem que ir a braços, que a maca não vem cá em cima”, relata.

Se na Torre 1 a degradação é mais gritante, o problema das avarias crónicas dos elevadores estende-se às outras torres e afecta particularmente a população com mobilidade reduzida. Como Maria Cândida, que mora no 13.º andar da Torre 3 e que sofreu um AVC há dois anos. Anda com ajuda de muletas,uma ambulância dos bombeiros vem buscá-la para a fisioterapia todos os dias. “Quando o elevador avaria, saio de casa com 45 minutos de antecedência. Tenho de estar cá em baixo a horas”, explica. Cândida diz que já não “liga nada ao que para aí andam a dizer”. “É tanta boataria que para aí se ouve. Mas nós cá vamos ficando. Estamos para aqui esquecidos. E olhe, eu até gostava que me deixassem cá estar sossegada”, remata.

Quando foi anunciada em 2008 por Rui Rio, os objectivos da intervenção passavam por realojar os mais de 300 agregados que habitavam nas cinco torres sem que a autarquia despendesse de qualquer montante e ainda ganhava um reforço na oferta de habitação social e assistiria a um acelerar dos esforços de reabilitação urbana. Seria um fundo imobiliário participado pela câmara que iria construir casas novas e reabilitar muitas mais, a troco de ficar com terrenos em localização privilegiada.  A contestação foi imediata, mas o processo avançou. Há 173 famílias que já foram espalhadas por vários bairros da cidade, não só as que habitavam as torres já demolidas, mas também de outras torres que ainda estão de pé. Lídia Mesquita e Cláudia Cristina, que se bateram para não sair do bairro, agora só querem saber quando é que chegará a sua vez. “Mas aos moradores da Torre 1 nunca ninguém diz nada. É como se não existíssemos”, lamenta Lídia.

O submundo é um sítio degradado e onde há lixo. Muito lixo. Mas onde também há flores. As que são teimosamente regadas pelos que querem acreditar que em todos os lugares se pode fazer algo bonito.

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