Castro Marim tem mais camas turísticas aprovadas do que habitantes

Uma torneira de água à porta de casa ainda é considerado um “luxo” para a maioria das povoações do nordeste algarvio. O turismo, quando nasce, não é para todos.

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Filipe Farinha
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Uma nuvem alaranjada acompanha o sol a pousar sobre a pequena povoação de Alcarias. Ao entardecer, acentuam-se as marcas da solidão no nordeste algarvio – uma das zonas mais deprimidas do país. Maria Rosa Dias, vestida de negro dos pés à cabeça, vai à fonte. Carrega consigo, não apenas o peso dos 87 anos de idade, mas também o balde de água para os afazeres da casa. “Eles, na Europa, partem do principio que isto, o saneamento básico, já está resolvido”, lamenta o presidente da Câmara, Francisco Amaral, PSD, rodeado de idosos, sentados no poial de uma velha casa. Mais de uma dezena populares aguardam a “boa nova” que o autarca tem para anunciar.

O fontanário ainda é o único ponto de abastecimento de água para 57 povoações deste concelho.  À dificuldade no acesso, junta-se a falta de controlo sanitário. “Pedimos a Deus para que a coisa mude”, diz Graciete Lopes, a lembrar que a bica mais próxima da sua casa secou este Verão. “Só de madrugada é que se conseguia água, durante o dia não chegava para todos”, acrescenta a neta, Ana Santos, de 26 anos, que vive em Vila Real de Santo António, mas recorda as férias da infância, passadas o ouvir o eco do cantar das perdizes nos vales e montes junto ao rio Guadiana. A barragem do Beliche, que integra o sistema de distribuição de Águas do Algarve (grupo Águas de Portugal) fica a pouco mais de meia dúzia de quilómetros. Porém, as condutas desviaram-se dos montes, e descem em grande velocidade, da serra ao litoral, como se fossem auto-estradas de água subterrânea em direcção às cidades.

Nos últimos anos, os projectos de Potencial Interesse Nacional (PIN) também chegaram a este concelho, prometendo ir ao encontro do “Algarve profundo”, levando a esperança de dias melhores para os mais jovens. Os benefícios tardam em aparecer. Segundo o Plano Ordenamento do Algarve (Prot), de 1992, o  concelho tem dez mil camas turísticas aprovadas, a distribuir por cinco Núcleos de Desenvolvimento Turístico. O total da população é inferior a sete mil habitantes.  Nalguns casos, os promotores avançaram com a construção de moradias e golfes, mas as gruas ficaram suspensas na crise e na falta de interesse dos visitantes que viram repetir-se na margem portuguesa do Guadiana o modelo que os espanhóis, alguns anos antes, já tinham abandonado por falta de compradores. 

Autarca pede perdão
Jacinto Cristino, de assobio afiado, conduz ao curral, um rebanho de 150 cabras. “Só agora, com este presidente, é que tivemos água no Cerro do Enho”, diz o pastor apontando para horizonte. “Não vê aquele depósito, além ao fundo?”. A infra-estrutura, explica, “leva a água da barragem para a beira- mar mas não chegou às nossas casas”, critica. Meia hora antes, Francisco Amaral, médico de profissão,em Alcarias, anunciava que iria levar a água até esta povoação, onde vivem 14 pessoas, com uma média de idades a rondar os 80 anos. “Não posso esperar pelos fundos comunitários para levar a água potável a casa das pessoas”, enfatiza o autarca, adiantando a razão de ser da visita ao local. “O que vim aqui fazer foi pedir desculpa, por só agora, ao fim de 40 anos de democracia e poder local, isto ser possível”.

Por promessas não cumpridas, um político pede desculpa? Antes da resposta, o riso e a pausa de Aurélio Romão deixaram transparecer algumas reticências, mas logo a seguir a voz adquire tom grave: “Se o senhor presidente promete, faz”, acrescenta. Daqui por dois meses, palavra de presidente, o fontanário passa à história. “No fim-de-semana, quando for ao baile com a minha Maria Joaquina, vou dançar mais leve só de pensar na boa nova”, graceja, o homem, de 83 anos, a gabar-se de ainda possuir “pezinho” ligeiro para saltitar o corridinho.  

O regresso às origens 
Maria Rosa Dias, menos convicta na garantia que foi dada, desabafa: “Gostaria de não morrer sem ver uma torneira de água à porta”. Casa-de-banho, acrescenta, é um “luxo” que não conhece. “Ora, tenho para ali uma barraca”, diz, referindo-se ao espaço que substitui o equipamento sanitário. O filho, Alberto Dias Nunes, de 65 anos, recorda o tempo em fazia “sementeiras com os arades, e o chão xistoso dava trigo e centeio.


O vizinho pastor, de 71 anos, lamenta não existir no Algarve um matadouro para abater o gado. O mais próximo fica em Beja, e o leite é vendido para fabricar queijo em Torres Vedras. “Virou-se tudo para o turismo, ninguém quer saber de mais de nada”, lamenta. O presidente da Câmara acrescenta um sinal positivo. “Estou a verificar que muita gente, depois de se reformar, está a regressar à aldeia e a recuperar pequenas hortas e montes”. Um dos exemplos é relatado, na primeira pessoa, por Aurélio Romão. Após uma vida profissional, a trabalhar como carpinteiro em Lisboa, instalou-se Alcarias, sitio onde deu os primeiros passos.   
A roupa preta que Maria Rosa Dias traz vestida, a cobrir todo o corpo, quer faça sol ou chuva, tem uma razão de ser. “Ando assim há mais de 20 anos: morreu-me o pai, irmão e o marido – nunca mais tirei o luto”. Os velhos costumes mantêm-se, mesmo que sejam poucas as palavras para explicar sentimentos profundos “Não me pesa a roupa”, responde, fugindo a lamentações. O rosto da anciã, com a luz da lua iluminar-lhe uma das faces, ganha dimensão poética. “Conheço as letras, mas não as sei juntar”, diz, perguntando: “Vou ter fotografia no jornal?”. Ao longe ouvem-se os chocalhos das cabras. Uma a uma, Jacinto Cristino vai ordenhar os 150 animais para extrair o leite, que na manhã seguinte há-de seguir para Torres Vedras, para fabricar o queijo saloio.

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