Casa Fernando Pessoa adjudica serviços a empresa com escritório na residência da sua directora

Além dos contratos directos, a mesma firma tem recebido encomendas indirectas, através de outras empresas contratadas pela Câmara de Lisboa e pela Egeac.

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Instalada em Campo de Ourique, a Casa Fernando Pessoa funciona desde 1993 como um centro cultural dedicado à obra do poeta Rui Gaudêncio

A Casa Fernando Pessoa adjudicou vários serviços por ajuste directo, desde o final de 2012, a uma pequena empresa que tem escritório em casa da sua directora artística, a escritora Inês Pedrosa.

Além das adjudicações feitas a essa empresa, o seu gerente e proprietário tem beneficiado de contratos indirectos, relativos à Casa Fernando Pessoa (CFP), celebrados pela Egeac, a empresa da Câmara de Lisboa que gere a instituição desde 2012, e pela própria autarquia.

Instalada em Campo de Ourique, num edifício camarário, a CFP funciona desde 1993 como um centro cultural dedicado à obra de Fernando Pessoa. Promove exposições, conferências e outras iniciativas ligadas à poesia em geral e a Pessoa em particular, para lá de publicar a revista Pessoa.

Em 2008, o presidente da câmara, António Costa, decidiu transformar este serviço municipal numa fundação, tal como defendia Inês Pedrosa, mas o projecto foi abandonado meses depois. Nesse período, todavia, o município despendeu mais de 50 mil euros em estudos preparatórios, parte dos quais nunca foram feitos e outra ficou por concluir.

A contratação da empresa Above Bellow, de que é dono e gerente o designer brasileiro Gilson Lopes, foi sempre feita sem consulta a quaisquer outros fornecedores — procedimento que a lei não exige, devido aos reduzidos montantes envolvidos nas adjudicações. Num dos casos, em Dezembro de 2012, a CFP encomendou-lhe cerca de 3 mil euros (mais IVA) em objectos de merchandising, contratando-a depois para fazer algumas fotografias por 520 euros.

Mais recentemente, através de outro contrato, foram-lhe encomendados vários serviços na área de artes gráficas e audiovisual, relativos ao III Congresso Internacional Fernando Pessoa, no valor de 4826 euros.

A particularidade deste última encomenda está no facto de a factura emitida em nome da Egeac, em Outubro do ano passado, indicar como “Escritório e morada postal” um apartamento de Entrecampos onde reside a directora artística da CFP. No mesmo local tem também sede a firma Inês Pedrosa, Unipessoal Ldª, detida exclusivamente por aquela escritora e jornalista.

Gilson Lopes presente em vários trabalhos
Paralelamente ao Congresso Internacional Fernando Pessoa, a CFP e a Egeac produziram a exposição Lisboa em Pessoa, que esteve patente nos dois últimos meses no aeroporto da Portela. A sua concepção e produção foram adjudicadas em Novembro, por ajuste directo e pelo valor de 13.856 euros (mais IVA), à empresa de publicidade WOP, a qual, de acordo com uma informação oficial da Egeac, “solicitou algumas ilustrações para este trabalho” a Gilson Lopes. O seu nome, todavia, consta da ficha técnica da exposição como responsável pela “direcção de arte e ilustração”.

Também a revista Pessoa, que é editada pela CFP e não se publicava há dois anos, voltou às bancas há dois meses, tendo o seu grafismo sido encomendado pela câmara, através de uma outra empresa, a Gilson Lopes, que figura na ficha técnica como responsável pelo design dessa edição.

Uma das coisas que chamam a atenção nestes contratos públicos e foi alvo de várias referências num blogue denominado Corta-fitas é o facto de o empresário ter uma relação de grande proximidade com a directora da CFP. Ao PÚBLICO sobre esse assunto Inês Pedrosa respondeu por email nos seguintes termos: “Não estou casada nem em situação configurável como união de facto — e a minha vida privada é, de acordo com a lei, isso mesmo: privada.”

Já Gilson Lopes começou por dizer, ao telefone, que não tinha nada a ver com Inês Pedrosa. Quando lhe foi lembrada a “morada postal” das suas facturas, pediu para lhe serem enviadas perguntas por escrito. Até hoje, passadas duas semanas, nada disse.

Quanto às adjudicações à Above Bellow, Inês Pedrosa comentou que está “contratada pela Egeac para a Casa Fernando Pessoa como prestadora de serviços de direcção artística, sem poderes para adjudicar o que quer que seja”.

As autorizações e propostas de adjudicação são de facto assinadas pela directora executiva da CFP, Carmo Mota. O PÚBLICO perguntou a esta funcionária da Câmara de Lisboa se a iniciativa de contratar Gilson Lopes era de Inês Pedrosa, mas a mesma respondeu apenas que reencaminhara o pedido de informação para a direcção da Egeac.

Num email enviado esta terça-feira ao PÚBLICO, a Egeac nada diz sobre aquela questão, mas informa que as decisões de adjudicação e contratação “são funções das direcções de equipamento” e que “as direcções artísticas definem as orientações artísticas da instituição, sendo que há uma total e necessária articulação entre direcções”, neste caso da CFP. 

A  Egeac acrescenta que os contratos em causa surgiram “num contexto da evidência de uma necessidade imediata e específica combinada com as referências profissionais da Above Bellow e de Gilson Lopes”, com “a disponibilidade de calendário para aceitação e realização dos projectos” e com o “equilíbrio [das suas propostas] face aos preços de mercado”.

Tanto a Egeac como a vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa, Catarina Vaz Pinto, recusaram-se a fazer qualquer comentário sobre as relações entre a directora artística da CFP e Gilson Lopes.

Advogado primo de Inês Pedrosa
A Câmara de Lisboa, através do então director municipal de Cultura, Rui Pereira, contratou no final de 2008 a advogada Maria José Oliveira e Carmo para prestar vários serviços relativos à constituição da Fundação Casa Fernando Pessoa. A jurista trabalhava à época com o advogado Miguel Pedrosa Machado, primo direito de Inês Pedrosa, a qual sugeriu a contratação a Rui Pereira.

O contrato, no valor de 24.996 euros, contemplava a elaboração dos estatutos da fundação, bem como oito trabalhos acessórios. Os arquivos da Direcção Municipal de Cultura, porém, apenas têm registo da entrega dos estatutos, que se traduzem em 19 páginas e 25 artigos — alguns deles iguais aos de minutas disponíveis na Internet. O contrato foi assinado por Rui Pereira e por Maria José Oliveira e Carmo a 26 de Novembro de 2008.

A nota de honorários da advogada e o recibo por ela emitido têm data do dia anterior, 25 de Novembro, sendo também desse dia o visto de Rui Pereira por baixo de um carimbo com a seguinte inscrição: “O trabalho foi executado nas devidas condições.” Nos termos do contrato, o mesmo só terminará quando a advogada apresentar à câmara “o requerimento a solicitar a declaração de utilidade pública” da fundação, algo que nunca aconteceu, até porque António Costa desistiu do projecto.

O clausulado refere também que o pagamento será feito de uma só vez, até 60 dias após a data do recibo. Oito dias depois da sua emissão, a 2 de Dezembro, Rui Pereira autorizou o pagamento, o qual foi efectivado no final desse mês. Maria José Oliveira e Carmo disse ao PÚBLICO que fez tudo aquilo a que se vinculou e que lhe foi possível fazer. “Se não se avançou com nada, não foi por inércia minha, mas porque a câmara travou o processo. Em todo o caso estou pronta a fazer a escritura em qualquer altura", afirmou”.
Quanto a Miguel Machado, a advogada afirma que foi ele quem a “apresentou ao cliente” e confirma que o mesmo esteve em duas reuniões. Mas garante que não prestou qualquer serviço, nem foi remunerado. Miguel Machado, por seu lado, afirma que foi ele quem sugeriu o nome da colega a Inês Pedrosa e diz que não recebeu qualquer remuneração, porque nada fez.

Também no final de 2008, a Câmara de Lisboa, através do mesmo director, encomendou a outros advogados três estudos igualmente relacionados com a criação da fundação. O facto de esses serviços não terem sido prestados, apesar de pagos por cerca de 28 mil euros, acabou por levar, em Outubro do ano passado, o Ministério Público a acusar Rui Pereira e duas advogadas, uma delas sua cunhada, pelos crimes de participação económica em negócio e falsificação de documento. 

O caso, que aguarda julgamento, fez com que Rui Pereira se demitisse, logo que foi acusado, das funções que desempenhava como director-geral do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça.   
 
 
 

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