Conceito de "escola inclusiva" posto em causa por proposta de lei

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Uma das questões mais importantes da educação especial é a da integração dos alunos com deficiência Nélson Garrido/PÚBLICO

A 12 de Janeiro, a equipa do Ministério da Educação (ME) apresentou uma proposta de lei para a reforma da educação especial e do apoio sócio-educativo. O anteprojecto foi pensado para as crianças com problemas e com necessidades educativas especiais (NEE), incluindo os sobredotados, e prevê que existam equipas multidisciplinares, inseridas, nos Centros de Apoio Social Escolar (CASE), responsáveis pela sinalização e encaminhamento das crianças deficientes ou com NEE.

Essas equipas trabalharão em conjunto com as escolas e os pais e vão ser responsáveis por traçar um Plano Educativo Individual para cada aluno, bem como um Plano de Integração na Vida Activa, dois anos antes de o aluno terminar a escolaridade obrigatória. O estudante pode ser integrado na escola de ensino regular, num centro de multideficiência (a funcionar na escola pública) ou numa escola especial.

No que diz respeito aos apoios sócio-educativos, a lei prevê que estes sejam atribuídos a meninos sem deficiência, mas com problemas na aprendizagem.

O documento esteve sujeito à discussão pública, durante um mês. Os contributos podem ser inseridos na página da Internet do ME, www.min-edu.pt. O período de discussão termina no domingo. Depois, o documento será "burilado", prometeu, ontem, David Justino. O PÚBLICO foi ouvir pais, especialistas e sindicatos.

O que é educação inclusiva?

Para os mais críticos, o conceito de "educação inclusiva" é posto em causa pelo projecto de decreto-lei, que utiliza uma linguagem "retrógrada" e "antiquada", além de misturar conceitos. A Declaração de Salamanca, promovida pela UNESCO e citada na proposta, defende a educação inclusiva, ou seja, que as crianças com NEE sejam integradas nas escolas regulares e só em carácter de excepção devam frequentar estabelecimentos de ensino especial. Cabe à escola adaptar-se à criança e não o contrário, explica Ana Maria Bénard da Costa, que foi responsável pelos serviços de educação integrada do Ministério da Educação e uma das autoras da legislação actualmente em vigor.

Ora, a proposta prevê que as crianças sejam encaminhadas para o ensino especial ou para unidades especializadas, que podem ficar longe das suas casas. Desse modo, aponta Mário Pereira, psicólogo e co-autor de livros sobre alunos com deficiência, não haverá verdadeira inclusão. "A separação dos alunos com deficiência de uma vivência plena na sua turma vai gerar o seu afastamento do convívio com os pares", uma relação essencial para que cresçam integrados, escreve no seu parecer sobre a proposta de reforma. Luís Miranda Correia, director da área de educação especial da Universidade do Minho, lembra no seu parecer que, segundo os princípios da educação inclusiva, "todos os alunos têm o direito de crescer e aprender juntos nas escolas das suas residências".

A Federação Nacional dos Professores (Fenprof) anunciou que, caso não sejam feitas alterações à proposta, fará uma denúncia à UNESCO por violação dos princípios da Declaração de Salamanca.

Documento defende escolas especiais

A Federação Nacional de Cooperativas de Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas (Fenacerci) considera "discutível" a ideia de criar um sistema específico para a educação especial, que "dá a ideia de ser paralelo ao sistema de educação". A ideia deve ser clarificada porque o ensino especial é parte integrante do sistema educativo, considera Rogério Cação, da direcção da Fenacerci.

O projecto chega mesmo a fazer um elogio às escolas de ensino especial, reclama Ana Bénard da Costa. O documento "enaltece" a missão das escolas de ensino especial, nota também Miranda Correia. "A título de curiosidade, o documento refere a palavra instituições 13 vezes, ao passo que só refere a palavra inclusão cinco vezes", contabiliza.

A Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (Aeep), concorda com a possibilidade de os alunos poderem frequentar outras escolas que não a do ensino regular. "Um modelo unidireccional de escola inclusa, sem alternativas, é limitador e desrespeitador das liberdades e diferenças individuais", escreve a direcção da Aeep. O projecto "reconhece" que a frequência de uma escola especial "é um direito inalienável".

Para a Fenacerci, o ideal é que as escolas de ensino especial deixem de existir. Alguns dos seus estabelecimentos estão a ser transformados em centros de recursos e trabalham em colaboração com o ME. "Somos uma excelente ferramenta para o crescimento da escola inclusiva. Não queremos perpetuar o ensino especial", declara Rogério Cação.

Os CASE, os professores e os psicólogos

Apesar da lei ser muito descritiva sobre as funções do CASE, não explica como serão constituídas as equipas. "Eles são omnipresentes e omnipotentes, mas como é que vão ser organizados?", questiona Rogério Cação, da Fenacerci. David Justino já disse que os recursos físicos e humanos das actuais Equipas de Coordenação dos Apoios Educativos podem ser transferidas para os CASE, mas nada mais se sabe.

Os CASE põem em causa a autonomia das escolas, devido a todo o poder que lhes é atribuído, diz Mário Pereira. A lei não refere o papel dos outros agentes do sistema, o que pode gerar autoritarismos e constrangimentos à participação desses, aponta o parecer da Fenacerci.

A Federação Nacional dos Sindicatos da Educação (FNE) recusa que, através deste documento, o ME aproveite para mexer no estatuto dos professores e dos não docentes. Mais: a FNE discorda que os coordenadores dos CASE sejam escolhidos pela administração central.

Um grupo de psicólogos dos Serviços de Psicologia e Orientação (SPO) perguntam: se as equipas são pluridisciplinares, por que é que o coordenador tem de ser um professor? "É inaceitável por se basear numa lógica de gestão corporativa e não por mérito ou competência", reagem. O Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado (STE) corrobora: "Atribuem-se competências a docentes nas áreas técnicas não docentes." Os elementos do SPO sugerem que o coordenador seja escolhido por concurso e tendo em consideração os currículos dos candidatos.

O STE, os psicólogos do SPO e a Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap) são contra a integração dos serviços de psicologia nos CASE, porque desconhecem quantos serão criados e questionam se tal não implicará a extinção de alguns dos SPO. A FNE concorda, se os CASE tiverem um âmbito geográfico razoável, e defende que os SPO precisam de se dedicar a todos os níveis de ensino, esclarece Manuela Teixeira.

Alunos com NEE ficam a perder

O ante-projecto prevê a redução, de 20 para 18, do número de alunos por turma quando existem crianças com NEE, mas para o Sindicato dos Professores da Região Centro (SPRC) esta medida é um "show-off", porque o número de turmas abrangidas pela redução de alunos será "meramente residual", já que o conceito de aluno com NEE é "reduzido apenas aos que manifestam tais características de modo sistemático e com carácter prolongado".

Miranda Correia, da Universidade do Minho, teme que "dezenas de milhar de crianças" fiquem de fora dos apoios educativos, já que a lei não prevê, no seu conceito de NEE, os alunos com dificuldades de aprendizagem - por exemplo, os disléxicos. "Hoje há muitas crianças que estão a ser afastadas dos apoios por razões pouco claras", alerta Albino Almeida, da Confap. A confederação vê com bons olhos o papel atribuído aos pais, que é mais activo e participativo.

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