O comboio descendente

No mundo rural, continuamos a rir-nos de quem se atreve a dizer que a tracção animal ou o pastoreio podem ser uma parte do caminho para uma maior sustentabilidade.

O meu artigo anterior falava da eventual utilidade da tracção animal em algumas circunstâncias. Na sequência, aliás, de uma constante defesa do restabelecimento do vínculo entre produção animal e produção agrícola e florestal, retomando os fundamentos de sustentabilidade das economias tradicionais, embora sobre bases tecnológicas e conceptuais modernas.

Esta linha de pensamento decorre do meu trabalho sobre gestão de paisagens e biodiversidade no qual, a pouco e pouco, se foi impondo a evidência do erro decorrente da especialização produtiva que separou, quase por completo, a produção agrícola, pecuária e florestal.

Hoje, cada um destes sectores está a braços com desperdícios que custam dinheiro e recursos, ou seja, competitividade, em especial nos territórios marginais, como são os da maioria do país.

Ao mesmo tempo que temos uma agricultura desesperada por matéria orgânica e fertilidade, temos ribeiras completamente destruídas pelos efluentes das pecuárias – e pelos resíduos dos adubos – e fogos florestais alimentados pelo crescimento de matos aparentemente inúteis.

Falamos da economia circular na indústria e na gestão urbana, procurando fechar ciclos, reutilizar, ganhar eficiência, olhando para a integração de processos de gestão que permitam usar como factor produtivo o resíduo ou desperdício do processo anterior.

No mundo rural, onde existem milhares de anos de experiência nesta integração, continuamos a rir-nos de quem se atreve a dizer que a tracção animal ou o pastoreio podem ser uma parte do caminho para uma maior sustentabilidade, desde que os saibamos modernizar para responder às necessidades concretas das pessoas e dos processos produtivos.

Curiosamente os comentários ao artigo anterior esqueceram completamente o seu conteúdo e centraram-se numa defesa acrítica dos comboios, geralmente associada a ataques ao transporte rodoviário, cujo êxito é sempre apresentado como resultado de umas conspirações quaisquer.

Negam-se algumas vantagens comparativas do modo rodoviário de transporte, numa boa demonstração de como os preconceitos são o primeiro problema a resolver, antes de qualquer discussão de fundo sobre sustentabilidade.

Defender o modo de transporte ferroviário não é defender a obsoleta, inútil, insustentável linha do Tua; defender o modo de transporte ferroviário é perceber que, do ponto de vista da sustentabilidade, é incomparavelmente mais importante o ramal ferroviário para as cargas do porto de Aveiro do que manter abertas linhas de passageiros que não servem ninguém.

O comboio, quando utilizado nas situações em que tem vantagens comparativas – transporte de grandes volumes de carga ou passageiros entre pontos mais ou menos fixos –, é um grande instrumento de sustentabilidade, havendo muito trabalho a fazer, em Portugal, no sentido de aproveitar o comboio, nas muitas situações em que pode ser competitivo.

Há questões de infra-estrutura (por exemplo, a dissociação da circulação de comboios a mais de 200 km/ h da circulação dos comboios em torno dos 100 km/ h, na linha do Norte, ou o fecho de Covilhã/Guarda), há questões de gestão pura e dura que parecem poder ser melhoradas na CP (sim, há responsabilidades dos seus conselhos de administração, claro, mas há também responsabilidades de sindicatos reaccionários que dificultam qualquer mudança, concentrados que estão em defender direitos existentes, mesmo que evidentemente absurdos), há questões de intermodalidade, quer no transporte em si (o que já foi uma boa oferta de comboio mais carro de aluguer em muitas estações, é hoje uma solução pouco conveniente), quer na bilhética e na articulação de horários e muitos outros aspectos de gestão sobre os quais tenho opiniões pouco seguras, por não ser especialista no assunto.

Há até questões culturais e simbólicas, sendo incompreensível que sejam muito raros os nossos governantes que usam o comboio nas suas deslocações oficiais, mesmo que seja entre Lisboa e Porto, onde a oferta é claramente conveniente (honra seja ao actual ministro do Ambiente, o primeiro, em muitos anos, a ter ido oficialmente ao Porto, de comboio).

Mas para que a discussão se faça de forma racional e útil é relevante reter dois aspectos: 1) há muita coisa que tem melhorado nos últimos anos e que pode melhorar com o claro predomínio do ferroviário sobre o rodoviário no próximo quadro comunitário de apoio; 2) há que reconhecer que a flexibilidade do transporte rodoviário, que está na origem da sua preferência por parte de milhões de consumidores e eleitores, não pode ser negada e deve integrar os critérios de gestão do modo ferroviário.

O confronto não é entre o comboio e o carro, o confronto é entre soluções mais consumidoras de recursos não renováveis e soluções menos consumidoras de recursos não renováveis.

Ao comboio convém a aliança com o carro (e o avião, e o barco, e o burro) e não o confronto, porque falta ao comboio flexibilidade para chegar a todo o lado e a qualquer hora, precisando dos outros meios de transporte para concentrar procura entre pontos definidos.

É essa concentração que garante os volumes de passageiros e carga necessários para demonstrar as suas inegáveis vantagens, económicas e ambientais, nessas circunstâncias.

A defesa acrítica do comboio, em toda e qualquer circunstância, é uma mera defesa do mundo da segunda metade do século XIX, que já não existe, não é uma defesa da sustentabilidade do século XXI.

Henrique Pereira dos Santos é arquitecto paisagista e consultor de gestão da biodiversidade.


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