Fica só mais um pouco no Rio, Olimpíada

O espírito olímpico existe e é carioca. Por duas semanas, os brasileiros tiraram férias dos seus problemas. É cedo para ter saudades?

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Edgard Garrido/Reuters

Até hoje Elika Takimoto não sabe o que lhe deu. Ela era uma dessas cariocas que falavam mal das Olimpíadas antes de começarem, cansada dos engarrafamentos numa cidade esventrada, das notícias diárias de assaltos, da corrupção e má gestão política que arruinou as contas públicas do Rio de Janeiro. Não ajudou que, na abertura dos Jogos Olímpicos, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, tenha pedido aos cariocas para ficarem em casa de modo a evitar transtornos no trânsito. “Isso me revoltou muito. Parece que a gente prepara uma grande festa com os convidados que sempre sonhou e, na hora da festa, trancam você no quarto, dizendo: ‘Fica aí. Você não pode participar porque pode estragar essa festa.’”

Mãe de três filhos, professora de física, Elika pretendia usar as Olimpíadas para se manifestar diariamente - em particular, contra o “golpe” que afastou Dilma Rousseff da Presidência. Era esse o plano quando ganhou um bilhete para ir ver tiro com arco no Sambódromo. Ela pensou: “Pô, isso deve ser um saco, deve ser muito chato”. Mas convenceu-se de que era por uma boa causa: produziu um cartaz que dizia “vai embora, Temer” em japonês, com a ajuda do Google Translator (dizê-lo em português tinha sido proibido), e lá foi. “Quando eu cheguei lá e comecei a ver, fiquei encantada com o que os atletas estavam fazendo, a distância da coisa, o que eles eram capazes de fazer. Fui lá achando que não me ia divertir nada e daí a pouco eu já estava torcendo. E torcendo pela Coreia! Não tinha atleta brasileiro nesse dia…” justifica. “Na minha cabeça pelo menos, os problemas foram esquecidos. Deixei de pensar em políticos, em corrupção, e falei: ‘Cara, eu vou viver isso, porque isso é muito bonito’.”

Subitamente, estava nas bancadas a assistir a desportos que nem sabia que existiam. E ela teria rido, mais do que agora, se há uns tempos lhe dissessem que iria comprar ingressos para o boxe. “Eu, Elika Takimoto, sempre fui radicalmente contra qualquer tipo de luta. Nunca achei que luta fosse desporto”, conta. “Me surpreendi como eu estava na plateia. Eu estava me sentindo naquele tempo da Grécia antiga, urrando para um bater mais no outro, entendeu? Eu estava transformada num outro ser que eu não estava reconhecendo! Eu não tenho explicação, não, ‘tá?” Elika não acreditava no espírito olímpico, pero que lo hay, lo hay. “De facto, eu acho que ele existe, sabe? Eu não acredito muito na quarta dimensão. Mas não dá para negar que há algo metafísico, contagiante, quando tem um evento desses acontecendo, que muda a atmosfera local. Eu pensei que a revolta fosse ficar o tempo todo em mim. Não ficou. O que prevaleceu foi a parte da festa. De querer aplaudir, prestigiar todos os que estavam competindo aqui, e receber bem quem veio para o Rio.”

Os seis meses que antecederam os Jogos Olímpicos no Rio foram um período bizarro no Brasil. A economia foi ladeira abaixo, o desemprego disparou, a epidemia da zika propagou-se, um Congresso dominado por políticos corruptos afastou uma Presidente democraticamente eleita num processo duvidoso, o Presidente mais popular do Brasil, Lula da Silva, foi ameaçado de prisão, o clima social tornou-se hostil. Isso e os atrasos na construção dos empreendimentos olímpicos, os escândalos de corrupção envolvendo as construtoras responsáveis pelas obras, o colapso de uma ciclovia à beira-mar, a remoção forçada de favelas, a calamidade das contas públicas do Rio de Janeiro, o aumento da criminalidade, etc., alimentaram as profecias catastrofistas de que um país tropical não ia estar preparado para organizar umas Olimpíadas - ou, pelo menos, umas Olimpíadas funcionais.

Múltiplos cenários possíveis foram antecipados, nenhum deles positivo: a ameaça de um ataque terrorista, o colapso de um recinto olímpico, o rapto de turistas estrangeiros por traficantes, protestos generalizados. Os cariocas em particular pareciam revoltados ou, no mínimo, indiferentes ao facto de acolherem os Jogos na sua cidade. O seu desporto favorito, nas vésperas da abertura, era apagar a tocha olímpica. Tudo isso mudou, literalmente, de um dia para outro. O sucesso da cerimónia de abertura trouxe um alívio imediato, como se tivesse afastado todas as más premonições. Na manhã seguinte, os cariocas estavam colados ao ecrã. Na Cadeg, o mercado abastecedor do Rio, uma mulher seguia uma disputa de esgrima na TV da frutaria, de pé, os sacos de compras nas mãos como pratos de uma balança. Cariocas viam imagens aéreas do Pão de Açúcar pousado sobre a Baía de Guanabara ou o azul turquesa do mar e louvavam a beleza da cidade, como se a vissem raramente.

A intensidade e o fascínio só foram crescendo à medida que os dias foram avançando e o Rio lembrou por que gostamos tanto de Olimpíadas: por causa das medalhas e dos recordes aparentemente sobre-humanos, mas sobretudo por causa das histórias inspiradoramente humanas. Nesse sentido, o Brasil foi generoso: grande parte dos seus atletas que conquistaram medalhas individuais representam o Brasil pobre, negro ou índio, excluído das narrativas de sucesso. Rafaela Silva. Robson Conceição. Thiago Braz da Silva. Isaquias Queiroz. Cada uma das suas histórias pode ser vista como uma metáfora do Brasil. Nas Olimpíadas os brasileiros parecem ter reencontrado um certo orgulho que não tem sido muito visível nos últimos tempos. Num contexto que favorece as rivalidades nacionalistas, alguns episódios convenceram os brasileiros de que existe algum comprazimento internacional em falar mal do seu país e destas Olimpíadas. Foi o caso da reportagem negativa do New York Times sobre o biscoito Globo, uma iguaria carioca que consiste numa argola de massa estaladiça, e o falso assalto denunciado pelos nadadores olímpicos norte-americanos que nunca aconteceu.

Nesta recta final, o olhar crítico deslocou-se para a cobertura da imprensa internacional. “Houve um clima um pouco alarmista que veio muito da imprensa estrangeira e que jogou muito com os estereótipos e preconceitos a respeito do Brasil. A zika é um bom exemplo: foi um caso em que claramente o grau de alarme ultrapassou em muito o que seria proporcional e razoável diante da dimensão efectiva do problema”, diz Miguel Conde, jornalista e editor literário, 35. “Há qualquer coisa no mundo desenvolvido que não gosta que um país em desenvolvimento organize um mega-evento desportivo”, escreveu Roger Cohen no New York Times.

Não é que os Jogos Olímpicos do Rio sejam isentos de críticas ou que se possa concluir de forma simplista, como o editorial de sábado do jornal O Globo, que “além de trazer dinheiro e gerar empregos, eles fazem bem à alma”. Assim que as Olimpíadas terminarem, o julgamento da Presidente Dilma Rousseff irá começar no Senado, reacendendo as batalhas políticas que fizeram uma pausa nas últimas duas semanas. “A impressão geral que eu tenho quando estou andando pelo Rio é que a gente está de férias dos nossos problemas”, diz Elika Takamoto. “Daqui a pouco as Olimpíadas vão acabar e os nossos problemas vão continuar.” É cedo para ter saudades dos Jogos Olímpicos?

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