Selecção natural arranjou solução para a versão humana da doença das vacas loucas

Variante da proteína do prião, que surgiu numa população humana da Papuásia-Nova Guiné, protege contra os vários tipos de encefalopatias espongiformes. Descoberta poderá ajudar a encontrar tratamentos no futuro.

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Na doença das vacas loucas, como noutras encefalopatias espongiformes, o cérebro fica esponjoso e cheio de pequenos buracos Enric Vives-Rubio

Nos anos de 1990, a doença das vacas loucas tornou-se num sério caso de saúde pública. A estranha doença que surgiu no final da década anterior, matando vacas no Reino Unido, foi associada a muitos casos humanos de um mal que era semelhante à rara doença de Creutzfeldt-Jakob, descrita nos anos de 1920. Hoje, sabe-se que estas duas doenças, assim como a doença de kuru, que atingiu uma tribo da ilha da Papuásia-Nova Guiné por volta de 1950, estão ligadas aos priões.

O prião é uma molécula capaz de deformar a versão normal da proteína do prião, que os humanos, aves e outros animais produzem naturalmente. Esta proteína está no cérebro, a sua função ainda não é muito bem compreendida. Quando alguém é infectado pelo prião, todas estas proteínas ficam sujeitas ao agente infeccioso, que transforma as moléculas saudáveis em novos priões. Com o passar do tempo, o cérebro ganha um aspecto esponjoso – daí a designação genérica de encefalopatias espongiformes para estas doenças, que provocam a demência e a morte.

Agora, os cientistas descobriram que uma variante da proteína do prião, encontrada na população afectada pela doença de kuru, é capaz de proteger ratinhos das várias formas de encefalopatia espongiforme. Além de ser uma demonstração da importância da variabilidade natural e um exemplo de selecção natural na espécie humana, a descoberta poderá ajudar os cientistas a encontrar tratamentos para aquelas doenças, segundo um artigo publicado esta quinta-feira na edição impressa da revista Nature.

Só em 1966 é que se descobriu qual era a fonte de contaminação que estava a afectar a povo de Fore, nas montanhas da Papuásia-Nova Guiné. Um dos rituais fúnebres daquela população passava por comer o cérebro dos mortos. E os cientistas mostraram que ao dar estratos do cérebro de pessoas que morreram com kuru a chimpanzés, estes acabavam por sofrer de uma doença neurodegenerativa. O canibalismo acabou, mas 3000 pessoas, principalmente mulheres e crianças, morreram, o equivalente a um décimo da população.

Em 2009, a equipa de John Collinge, da University College de Londres, no Reino Unido, autora do estudo actual, descobriu uma variante da proteína do prião numa amostra de um indivíduo da população de Fore, que não foi afectado pela doença.

A proteína do prião é formada por uma sequência de 253 aminoácidos, os tijolos que constroem as proteínas. Tal como o resto das proteínas, a proteína do prião é construída com base num gene, que está na molécula de ADN, no núcleo das células.

São os genes que definem a sequência de aminoácidos das proteínas. É por isso que as mutações no ADN podem ter uma influência importante nas doenças. Uma mudança na sequência de ADN de um gene pode causar uma mudança num aminoácido da proteína daquele gene. Essas alterações podem estragar a proteína, causando uma doença. Muitas vezes, a mutação nem sequer altera os aminoácidos da proteína, ou a alteração de um aminoácido não põe em causa o funcionamento normal da proteína. Nalguns casos, a mutação pode até ser benéfica.

Cada pessoa tem dois exemplares de cada gene, um vindo dos cromossomas dados pela mãe, no óvulo, e outro vindo dos cromossomas dados pelo pai, no espermatozóide. Muitas vezes estes exemplares não são iguais. É normal haver numa população algumas variantes para cada gene, que surgiram no passado devido a mutações casuais. Só assim podem existir várias cores de cabelo e de olhos.

De vez em quando, uma variante de um gene pode ser particularmente importante para a sobrevivência dos indivíduos de uma população. Se estes indivíduos com aquela variante sobrevivem ao contrário dos outros, esta variante torna-se hegemónica. Esta ideia é a base da teoria da selecção natural que o evolucionista Charles Darwin desenvolveu, e que o ajudou a explicar como é que as espécies aparecem e se diversificam em espécies diferentes. Na Papuásia-Nova Guiné poderia estar a ocorrer algo semelhante devido à doença de kuru.

A proteína do prião encontrada naquela população tinha no aminoácido 127, em vez da glicina – o aminoácido normalmente existente nesta posição –, a valina. Os cientistas foram testar, em ratinhos geneticamente modificados com o gene humano para o prião, se esta variação alterava a sua susceptibilidade a vários tipos de encefalopatias espongiformes que afectam os humanos: a doença de Creutzfeldt-Jakob, a doença de kuru, e a doença associada às vacas loucas.

Assim como os humanos, os ratinhos têm dois exemplares de cada gene no seu ADN. Por isso, os cientistas fizeram uma comparação da capacidade de resistência àquelas doenças entre os ratinhos que tinham dois exemplares do gene humano normal para a proteína do prião e os ratinhos que tinham um exemplar da variante normal e outro exemplar da variante da Papuásia-Nova Guine e, ainda, um terceiro grupo de ratinhos que tinha os dois exemplares da nova variante.

Os resultados foram claros. Os ratinhos só com a variante normal foram completamente susceptíveis à doença. Mas tudo mudou nos ratinhos com a nova variante. Aqueles que só tinham um exemplar da variante da Papuásia-Nova Guiné ficavam imunes à doença de kuru e à doença de Creutzfeldt-Jakob. Mas parte dos ratinhos acabava, à mesma, por ter a doença associada às vacas loucas. No entanto, o grupo de ratinhos que tinha os dois exemplares da nova variante não teve nenhuma das três doenças.

Não se sabe exactamente que tipo de resistência é que a nova proteína ganha em relação ao prião. Mas os cientistas acreditam que esta nova variante estava a ser escolhida pela selecção natural durante a epidemia da doença de kuru, naquela população da Papuásia-Nova Guiné.

“Este é um exemplo notável da evolução darwiniana em humanos”, diz John Collinge, citado num comunicado da University College de Londres, que estuda os priões há muitos anos. “Muito do trabalho agora é compreender a base molecular deste fenómeno, o que esperamos que nos ajude a perceber como é que se desenvolve a doença no cérebro a partir das sementes [de priões], e que nos guiará para novos tratamentos nos próximos anos.”

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