O que acha de um bife feito de clara de ovo e água?

Inventou a cozinha molecular há 30 anos. Hoje, o químico francês Hervé This lança outra provocação: só poderemos alimentar o mundo se mudarmos para a “cozinha nota a nota”. Podemos criar uma textura e juntar-lhe um cheiro, uma cor, um sabor. E o resultado, será comida?

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O químico francês Hervé This Sandra Ribeiro

Hervé This tem uma mensagem para passar e precisa da total atenção da assistência.

Por isso, salta no palco, diz piadas, bate claras de ovo em castelo, lança provocações. Tudo vale, desde que ouçam o que ele tem para dizer, e que é sério: “Temos de alimentar 10 mil milhões em 2050, e com a alimentação que temos não vamos conseguir. A grande questão é: o que vamos comer amanhã?” Ele tem a resposta.

O químico francês – que esteve em Portugal na semana passada para duas conferências nas escolas de Hotelaria e Turismo de Lisboa e do Estoril – é geralmente apresentado como o pai da gastronomia molecular. “Sifões, azoto líquido, isso não foi inventado por Ferran Adrià, mas provavelmente por mim”, diz, para logo de seguida lançar a provocação: “A gastronomia molecular está acabada, isso é uma coisa para avós.” Mas, atenção, não quer dizer que esteja ultrapassada, mas sim que já está de tal maneira integrada na forma de cozinhar hoje em dia que já não lhe interessa.

Espuminhas e esferificações são muito divertidas, mas o que o preocupa agora é alimentar o mundo. E a solução está naquilo a que chamou “cozinha nota a nota”. Extraem-se da natureza compostos puros, ou obtêm-se compostos sintetizados, e cozinha-se com eles, combinando-os de mil maneiras possíveis.

Não é fácil de explicar. E This tem perfeita consciência de que esta conversa de laboratório ligada à comida é algo que desagrada à maioria das pessoas. “Sou químico, não sou chef. Sou uma daquelas pessoas que vos tentam envenenar”, diz, provocando gargalhadas. “Mas, ao mesmo tempo, vocês comem químicos e não se importam.”

Sabe que se falar em etanol levanta suspeitas. Mas se falar em açúcar não. O que são, afinal, os compostos puros com os quais, diz, vai ser feita a cozinha do futuro? O açúcar, por exemplo, ou o ácido cítrico. Ou a água. Em cima da bancada onde vai fazer uma demonstração, This tem, para além daqueles, albumina, que vai ser a proteína base do seu “preparado”. Junta-lhe óleo sem sabor nem cheiro, depois açúcar em quantidades generosas e por fim o ácido cítrico. Primeiro bate a clara com uma varinha, criando uma espuma, depois, já com o óleo, obtém uma emulsão. Coloca-a no microondas e consegue uma textura esponjosa e consistente. Tem aí um exemplo de uma textura que pode ser obtida a partir de compostos puros.

No processo junta também corantes, e o preparado fica vermelho e verde. Tem textura, cor e sabor – provamos e está muito ácido, mas This não é cozinheiro, e juntar o açúcar e o ácido cítrico em quantidades industriais, como acaba de fazer, só por milagre podia dar um resultado equilibrado. Falta-lhe também o cheiro, mas isso poderia também ser acrescentado com outro composto.

E consegue, por exemplo, obter um bife?, perguntamos a Hervé This numa entrevista no final da conferência em Lisboa. “Ah, fizemos isso esta manhã [na conferência no Estoril], não é difícil. A clara de ovo tem 10% de proteína, e quando se tem essa proteína [sob a forma de albumina], acrescenta-se água. Como a carne tem 60% de proteínas, se puser seis colheres de albumina e quatro de água faz um bife.” Basta juntar o cheiro e o sabor.

Está, contudo, a ser desenvolvida toda uma tecnologia complexa para criar o primeiro hambúrguer artificial a partir de células, lembramos. “É inútil”, responde This. “Isso é muito bom para fazer tecidos vivos, imagine que perde uma orelha num acidente, para isso seria muito útil. Mas para comida… Qual é o objectivo? Se o objectivo é criar fibras cheias de água e proteínas, não estou certo de que cultivar células seja a melhor forma.” Espanta-o também que as pessoas insistam na textura da carne. “Podemos criar muitas texturas diferentes. Porquê a da carne? Eu não estou interessado em carne. Gostamos de carne por hábito e porque nos dá proteínas. Mas porquê ficarmos agarrados a fibras cheias de suco?”

Passar ao mundo a ideia de que há uma forma completamente diferente de nos alimentarmos, e que essa forma é o futuro, não é fácil. As pessoas perguntam-lhe se essa comida do futuro será sempre líquida ou mole, se os compostos puros não são perigosos para a saúde, se não nos faltam vitaminas, se tudo isto significará o fim da agricultura. This não tem todas as respostas, mas acredita que é urgente continuar o trabalho que está a fazer.

Tem, neste processo, um cúmplice inteiramente em sintonia com ele: o chef francês Pierre Gagnaire. A partir dos desafios que o químico lhe envia, Gagnaire tem vindo, há vários anos, a criar receitas – o primeiro prato inteiramente nota a nota foi apresentado em 2009 em Hong Kong e recebeu o nome de Chick Corea.

Quanto ao público em geral… bem, esse mostra-se mais céptico. Mas This confessa que tem uma estratégia, que lança no seu tom provocatório. “Não querem a nota a nota? Não me interessa. Vou dá-la ao rei e assim toda a gente a vai querer comer.” “Dar ao rei” neste contexto significa que vai despertar o interesse dos grandes chefs por este conceito, eles vão começar a servi-la nos seus restaurantes de três estrelas, e a partir daí toda a gente a vai querer experimentar, tal como aconteceu com a cozinha molecular.

E onde iremos buscar os compostos puros? “A Europa está a apoiar alguma investigação ligada à substituição de proteínas de animais por proteínas de plantas, porque se sabe que não haverá proteínas de animais para toda a população. Mas se temos proteínas extraídas de plantas, temos que cozinhar com elas. E como vamos fazer isso? A resposta é a cozinha nota a nota”, insiste.

Talvez seja demasiado cedo para esta mensagem, e o mundo ainda não esteja preparado para ela. Talvez, mas This garante que a reacção das pessoas não o preocupa. “Quando propus a cozinha molecular, há 30 anos, e falei de coisas como o alginato, os chefs disseram que eu queria envenenar as pessoas. Mas quando rebentou a crise das vacas loucas, em duas semanas mudaram todos para o alginato porque não queriam usar a gelatina animal.”

O mesmo vai acontecer, prevê, quando “a crise da energia e a crise da água” vierem provar que o sistema de alimentação que temos não é sustentável. “Esses camiões cheios de cenouras e tomates que andam nas estradas estão cheios de água. Quando transportamos comida, transportamos água.” Retirar a água e separar os diferentes componentes de, por exemplo, uma cenoura, permite evitar o enorme nível de desperdício que existe hoje, argumenta o químico.

Admite que está preocupado com o futuro dos agricultores, e por isso é que quer que eles também participem nesta revolução. A proposta é que passem a fazer esse processo de selecção dos componentes dos vegetais em máquinas nas próprias quintas e que vendam separadamente os diferentes produtos daí resultantes – uns para alimentação, outros para outros fins. Idealmente, assim a cozinha nota a nota poderá também ajudar “os agricultores a enriquecer”.

Quanto aos animais, a resposta é mais complicada. Deixaremos de criar animais para alimentação? “A resposta é que provavelmente sim, mas não devemos ser demasiado provocatórios. Se queremos ter sucesso, propor hoje a ideia de não haver animais no futuro é provavelmente um erro. Não me parece boa ideia dizer ‘você vai deixar de ter o seu bacalhau e passar a ter nota a nota’. Mas claro que as duas coisas podem coexistir.”

Um dia, espera, a forma “medieval” de nos alimentarmos (e que parecemos tão renitentes em abandonar) será substituída pela que propõe. Aos que lhe dizem que nota a nota “não é comida”, lembra como foi com a música: “Quando se começou a ouvir jazz em França, as pessoas também diziam ‘não é música’. Não vou lutar pela nota a nota. Sei que ela vai chegar.”

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