Doentes com lesões em área específica do cérebro “imunes” ao jogo compulsivo

Equipa internacional liderada por investigador de instituto dirigido por António e Hanna Damásio nos EUA revela possível influência da ínsula na distorção da percepção do risco nos jogadores compulsivos. Quando esta região está lesionada, essa compulsão fica inibida.

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Não é por o vermelho ter saído dez vezes consecutivas na roleta que a seguir vai sair o preto Ralf Roletschek/Wikimedia Commons

Quem já gastou um monte de moedas numa slot-machine poderá ter sentido que o facto de ter “quase” ganhado o Jackpot (com dois desenhos iguais e o terceiro a uma linha de distância) fazia aumentar as suas hipóteses de o ganhar mesmo na jogada seguinte. E quem jogou na roleta talvez tenha pensado que se o vermelho já saíra muitas vezes a fio, na próxima jogada o mais seguro era apostar no preto – um caso típico da chamada “falácia do jogador”.

De facto, nada é mais falso do que estas ideias; não há lei das probabilidades que sustente estas percepções das hipóteses de ganhar, que só podem ser qualificadas de supersticiosas. Mas então por que é que algumas pessoas, apesar de estarem aparentemente na plena posse das suas faculdades cognitivas, desenvolvem atitudes compulsivas baseadas em falsas expectativas e falsos raciocínios como estes, e acabam por perder fortunas? Por que é que certos jogadores têm a ilusão de que conseguem controlar o jogo ou pensam ter detectado padrões inexistentes no meio de sequências aleatórias?

Uma equipa de cientistas, cujos resultados foram publicados esta segunda-feira na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), descobriu agora que uma pequena estrutura cerebral chamada ínsula, bem escondida nas convoluções do córtex e envolvida nas emoções, poderá estar por detrás destas “distorções cognitivas” nos jogadores compulsivos.

A relação razão/emoção evoca logo os nomes dos neurocientistas portugueses António e Hanna Damásio, radicados nos EUA desde os anos 1970 e pioneiros das pesquisas sobre a forma como as nossas emoções são essenciais para conseguirmos tomar decisões racionais acertadas no nosso dia-a-dia. Hoje, sabe-se que várias estruturas cerebrais estão envolvidas nessa relação entre o intelecto e as emoções: o chamado córtex pré-frontal ventromedial, a amígdala e a ínsula.

Antoine Bechara, psicólogo do Instituto do Cérebro e da Criatividade, criado e dirigido na Califórnia pelo casal Damásio, juntamente com colegas da Universidade de Cambridge e do University College de Londres (Reino Unido) e da Universidade do Iowa (EUA), quiseram avaliar o efeito de lesões nestas áreas no comportamento dos jogadores compulsivos. O objectivo era desvendar as bases neurobiológicas da compulsão pelo jogo, que, no Reino Unido, se estima afectar entre 1% e 5% dos jogadores em geral, com consequências nefastas para as suas finanças, a sua vida profissional, as suas famílias e conducentes à depressão. Em Portugal, segundo um estudo de 2009 da Universidade Católica Portuguesa, pelo menos 16 mil pessoas eram dependentes do jogo a dinheiro.

Para realizar o estudo, estes cientistas apresentaram duas tarefas que simulavam jogos da sorte, do tipo dos acima referidos, a 31 participantes com lesões numa daquelas três áreas do cérebro, bem como a 13 que tinham lesões noutras regiões e 16 que não tinham lesões cerebrais.

Mais precisamente, explicam na PNAS, na tarefa da roleta, os voluntários deviam escolher apostar no preto ou no vermelho após uma longa série de resultados em que saíra sistematicamente a mesma cor. Quanto à tarefa das máquinas de moedas, compararam a motivação dos participantes em tornarem a apostar após um “quase” Jackpot e após uma combinação qualquer de três desenhos.  

Os cientistas constataram então que, tanto os grupos com lesões no córtex pré-frontal ventromedial e na amígdala como o grupo sem quaisquer lesões apresentavam, nas duas tarefas, as distorções da percepção cognitiva que costumam surgir naturalmente nas pessoas colocadas perante estas situações nos jogos da sorte, “mostrando uma maior motivação para tornar a jogar após um [‘quase'-Jackpot] e manifestando o efeito clássico da falácia do jogador” no caso dos resultados consecutivos de mesma cor na roleta, lê-se no artigo. Mas pelo contrário, nenhum desses efeitos se manifestou no grupo das pessoas com lesões na ínsula.

“Os nossos resultados sugerem uma hipótese clínica segundo a qual, nos comportamentos de jogo desorganizado, este processamento cognitivo distorcido poderá envolver uma actividade excessiva dos circuitos da ínsula”, concluem os autores.

Não é a primeira vez que esta estrutura cerebral é implicada nos comportamentos compulsivos. Em 2007, uma equipa liderada por Hanna Damásio e Antoine Bechara já tinha mostrado que fumadores que tinham sofrido lesões na ínsula tinham uma maior probabilidade do que outros de deixar facilmente de fumar definitivamente. (ver Fumadores com lesões no cérebro esqueceram-se da vontade de fumar, PÚBLICO de 26/01/2007).

“Com base nos nossos actuais resultados, pensamos que a ínsula poderá estar hiperactiva nos jogadores compulsivos, tornando-os mais susceptíveis aos referidos erros de raciocínio", diz o co-autor principal Luke Clarke, de Cambridge, em comunicado da sua universidade. "No futuro, talvez seja possível desenvolver tratamentos contra esta dependência do jogo capazes de reduzir essa hiperactividade, seja através de medicamentos, seja através de técnicas psicológicas tais como as terapias cognitivo-comportamentais.”
 

   

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