Recriada a rota do ébola na Serra Leoa, um vírus que continua a mudar

Cientistas sequenciaram o genoma do vírus do ébola de 78 doentes na Serra Leoa e traçaram a origem do surto nesse país. Estes dados do vírus já são públicos e poderão ajudar no combate à doença.

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Dois enfermeiros levam um doente de ébola num bairro de Monróvia, capital da Libéria AFP

A 2 Dezembro de 2013, uma criança de dois anos adoeceu com ébola, na aldeia de Meliandou, no Sul da Guiné-Conacri, perto das fronteiras com a Serra Leoa e a Libéria. Quatro dias depois, estava morta. A mãe, a irmã e a avó da criança foram as vítimas seguintes. O novo ano iniciava-se com um surto de uma febre hemorrágica mortal que se manteve fora do radar das autoridades até final de Março. A doença teve tempo de se espalhar e atingiu a Libéria, a Serra Leoa e, mais tarde, a Nigéria.

Provavelmente, nunca vamos ficar a saber como é que aquela criança apanhou a doença. Mas a genética está a revelar muito da história do vírus que agora grassa naquela região da África Ocidental. Uma equipa internacional de 58 investigadores sequenciou exaustivamente o material genético de vírus de 78 doentes da Serra Leoa, que adoeceram entre Maio e Junho. Os cientistas descobriram que dois grupos de vírus diferentes introduziram a doença na Serra Leoa e, provavelmente, houve uma única passagem do vírus do hospedeiro na natureza para uma pessoa. Talvez tenha sido a criança de dois anos de Meliandou, mas não se sabe.

O trabalho é publicado nesta quinta-feira na edição online revista Science e mostra ainda que, no terreno, o ébola continua a mudar. Os cientistas já disponibilizaram esta informação para quem quiser estudar e combater o pior surto de sempre do ébola.

“Divulgámos publicamente os dados sobre a sequenciação o mais rápido que pudemos”, disse Kristian Andersen ao PÚBLICO, um dos autores do estudo da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Muitas equipas já usaram esta informação. “A doutora Erica Ollmann Saphire, do Instituto de Investigação Scripps [na Califórnia, EUA], já os usou para compreender melhor como é que a variação genética observada nos vírus do surto de 2014 pode afectar componentes-chave dos anticorpos do cocktail do ZMapp, um fármaco usado como tratamento experimental neste surto.”

Esta urgência pela informação genómica do ébola demonstra a gravidade da epidemia. Até agora, os surtos restringiam-se normalmente a aldeias isoladas dos países da África Central, e demoravam menos de quatro meses a acabar, fazendo poucos mortos. Desta vez, um conjunto de factores fez com que se desenvolvesse a tempestade perfeita: o ébola é uma novidade na África Ocidental, a Guiné-Conacri, a Libéria e a Serra Leoa são países muito pobres, os sistemas de saúde são limitados, há bastante movimento entre as fronteiras e existe falta de conhecimento em relação ao vírus e um preconceito em relação à Medicina ocidental.

As consequências têm sido dramáticas. Já morreram 1552 pessoas, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Do pessoal médico foram 120, incluindo cinco dos autores deste estudo. “O vírus abalou significativamente o Hospital Governamental de Kenema [na Serra Leoa] e perdemos cinco dos nossos co-autores, incluindo o director clínico do hospital, o doutor Sheik Humarr Khan. No seu trabalho como profissionais de saúde, estes funcionários dedicados arriscaram a vida para salvar outras pessoas”, disse-nos Kristian Andersen, que esteve durante o surto em Kenema, uma cidade no Sudeste da Serra Leoa.

Os vírus são constituídos por material genético e um invólucro com proteínas. Usam a maquinaria celular e a matéria-prima que existem nas células para produzirem as suas próprias proteínas, a partir do seu material genético, e também para replicarem o próprio material genético. É neste processo que podem ser geradas mutações.

Não se sabe por que é que algumas pessoas sobrevivem a esta doença enquanto outras morrem. Há factores que poderão ser importante, “como a genética do vírus e a dos humanos, assim como a capacidade de certas pessoas lançarem uma resposta rápida e robusta contra o ébola”, adiantou Kristian Andersen, especialista em Imunologia e em Genética Evolutiva Computacional.

Ao analisar a genética dos vírus das 78 pessoas na Serra Leoa, nalguns casos os investigadores conseguiram tirar mais do que uma amostra em certos doentes, no desenrolar da doença. Deste modo, conseguiram observar a evolução genética do vírus num único hospedeiro. Ao todo, foram sequenciados 99 genomas do vírus do ébola.

Existem cinco estirpes deste vírus descobertas em surtos diferentes desde 1976, quando se identificou pela primeira vez o vírus. A estirpe do Zaire originou a actual epidemia. A extensa análise genética dos 99 genomas serviu para comparar o vírus do actual surto com os vírus da estirpe do Zaire de surtos passados na África Central.

“Mostrámos que a estirpe de 2014 partilha um antepassado comum há cerca de dez anos [2004] com as estirpes da África Central. É impossível saber ao certo como é que o vírus viajou vindo dos locais na África Central onde estava a estirpe antepassada. A única forma de desvendar esta história seria sequenciar o genoma do reservatório do vírus do ébola”, explicou Kristian Andersen. Pensa-se que os morcegos frutívoros são o reservatório natural do vírus. “Não se sabe se o reservatório do vírus viajou para a África Ocidental ou foi transportado, por avião ou carro. Também não se sabe se existiram pequenos surtos em seres humanos que não foram detectados e podem ter contribuído para a migração para a África Ocidental.”

Os investigadores encontraram 300 alterações genéticas novas nos genomas estudados, em relação a estirpes passadas. Mas a pequena variação entre estes 99 genomas indicou que o surto se iniciou com uma única passagem da natureza para o homem e que todas as outras transmissões terão sido feitas entre humanos. Geralmente, a transmissão inicial pode acontecer pelo contacto de pessoas com fezes de morcegos infectados, frutos contaminados por eles ou pela caça de outros animais com ébola, como macacos.

Nalguns surtos do passado, estas transmissões aconteceram mais do que uma vez. “Para compreender completamente esta questão, é importante sequenciarem-se mais [vírus de doentes] na Guiné-Conacri, na Serra Leoa e na Libéria”, explicou o cientista. Só assim se poderá ter a certeza de que houve uma única transmissão da natureza. “É importante compreender esta questão para prevenir a escalada deste surto. Se pensássemos que houve vários eventos zoonóticos, então teríamos de nos ter concentrado na prevenção da transmissão do reservatório natural para os humanos.”

Na Serra Leoa, confirmou-se a presença do primeiro doente com ébola a 25 de Maio. Tudo começou no funeral de uma curandeira que vivia no Norte do país e tinha prometido curar pessoas da Guiné-Conacri com a doença. Os funerais têm sido um problema na transmissão da doença. “Na Guiné-Conacri, por exemplo, 60% dos casos estão ligados a cerimónias fúnebres”, escreveu Margaret Chan, directora-geral da OMS, num artigo recente da revista New England Journal of Medicine (NEJM).

No funeral daquela curandeira, 13 mulheres ficaram infectadas devido ao contacto com o corpo. Mas houve um detalhe curioso que só foi revelado agora pela sequenciação genómica dos vírus, adianta Kristian Andersen: “Dois grupos de vírus geneticamente diferentes foram introduzidos na Serra Leoa ao mesmo tempo e, provavelmente, durante o mesmo funeral.” Não se sabe se a curandeira estava infectada pelas duas estirpes ou se outra pessoa que foi ao funeral também estava doente com outra estirpe. Mas, a partir daí, a doença espalhou-se no país.

O vírus continua agora a multiplicar-se e a sofrer mutações: não se sabe se alguma das mutações já observadas pode piorar o surto. “À medida que o vírus continua a modificar-se, pode deparar-se com oportunidades evolutivas que ainda não tinha experimentado. Quanto mais tempo o surto se mantém activo, mais oportunidades o vírus terá”, considerou o investigador, adiantando, contudo, que acha improvável que o ébola se torne endémico na população humana.

O fim desta terrível epidemia demorará, pelo menos, seis a nove meses, de acordo com a OMS. Mas, qualquer que seja o seu desenlace, quando alguém escrever sobre ela, no futuro, terá de voltar ao momento fundador: quando uma criança de dois anos apanhou ébola numa aldeia no extremo da Guiné-Conacri. Como explicaram Thomas R. Frieden e colegas, dos Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, noutro artigo do NEJM, esta será uma “lembrança dolorosa” de que um surto iniciado num qualquer lugar pode tornar-se um risco para todos.

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