Volta aos Vinhos Verdes em 60 vindimas: À mesa com Fernando Moura
O enólogo personifica a salto qualitativo nos vinhos da região. À mesa do Sabores da Quinta, defende o potencial do espadeiro, do avesso e dos tintos, e a sua predilecção por vinhos de blend.
De uma assentada, elenca mais de 20 produtores cujos vinhos levam a sua assinatura, mas vários outros vão surgindo depois, ao longo da conversa. A vida e o percurso de Fernando Moura, figura tutelar da enologia nos Vinhos Verdes, confundem-se com a história recente da região, e as grandes mudanças das últimas décadas na viticultura e na enologia. “Quando comecei a trabalhar, só queriam tintos, diziam que os brancos eram para lavar os pés”, descreve o homem que é a referência para os enólogos da região, mas que continua a privilegiar a discrição e prefere a sombra do trabalho nas adegas ao brilho dos holofotes.
Desde criança que o vinho lhe foi familiar. Filho de um produtor e armazenista de Mondim de Basto, está desde 1980 ligado como técnico à região, depois da formação em Agronomia, em Lisboa. Hoje vinifica mais de 15 milhões de litros por ano e, com as da juventude nas vinhas da família, soma já mais de 60 vindimas na região, uma experiência e conhecimento ímpares, que percorre os Vinhos Verdes de norte a sul, de este a oeste.
Das grandes cooperativas às quintas históricas, pequenos e grandes produtores, faz vinhos de Monção e Melgaço a Vale de Cambra, do litoral até às montanhas que delimitam a região com o Douro e Trás-os-Montes. Conhece os cantos e recantos do Vinho Verde, as castas, os solos e até as estradas e caminhos que o conduzem pela apertada agenda que lhe permite acompanhar os vinhos de todas as adegas. “Às segundas passo pelo Ave e Cávado, terças Basto e Baião, quartas Amarante e Penafiel, à quinta vou a Ponte de Lima, sexta a Monção e Melgaço, e tenho de tirar parte do sábado para ir a Vale de Cambra”, assim explica a rígida rotina que se impõe nesta espécie de milagre de multiplicação dos vinhos.
Começou como técnico na Comissão Regional, onde estagiou, e depois na Direcção Regional de Agricultura, no apoio aos viticultores. Desses tempos iniciais, recorda “a guerra” que foi o arranque das videiras americanas e as campanhas para convencer os produtores a usar sulfuroso nos mostos, fazer a trasfega para evitar a maloláctica e os vinhos não azedarem, lavar as vasilhas e mantê-las sempre atestadas.
Uma mudança radical
“Naquele tempo, os vinhos eram uma desgraça, grau baixo, desequilibrados, herbáceos, cheios de acidez e carregados de bactérias. A técnica era manter algum açúcar residual e acrescentar gás para equilibrar e evitar a refermentação.” Um tempo em que “não havia equipamentos e as adegas eram uma miséria”, mas que mudou radicalmente.
E mesmo que o gás vá desaparecendo e seja hoje já quase residual, Fernando Moura não vê qualquer inconveniente em que, “desde que não seja nos DOC”, se mantenha nalguns vinhos da região. “Defendo o modelo francês com a classificação DOC para os vinhos de qualidade superior e VQPRD para outros, e aí já podem ter gás em qualquer lugar.”
Uma mudança radical de que ele próprio foi pioneiro: “Fui eu que tirei o gás do alvarinho.” Isto pouco depois de ter começado a trabalhar na Adega de Monção, em 1989. “Foi depois de ter convidado um amigo para provar o Deu-la-Deu, estava cheio de gás, fiquei envergonhado, e em 1991, na feira da cultura de Melgaço já apresentámos o alvarinho sem gás. Nessa altura ainda tentámos tirar o gás também ao Muralhas, mas o mercado não aceitou, reagiu mal. Hoje já é quase residual, abaixo de 0,5 bares, mas é ainda importante para os 3,5 milhões de garrafas que se fazem em cada ano.”
Apesar da emergência hegemónica dos brancos, “que estão hoje noutro mundo”, Fernando Moura acredita que na região continua a haver lugar para os tintos, sobretudo para os de algumas zonas, como Asnela (Mondim de Basto), Gatão (Amarante), Paçô (Arcos de Valdevez) e Bairros (Castelo de Paiva). Quanto às castas, além da consagração dos alvarinho e do reconhecimento cada vez maior para os loureiro, acredita que, pelos aromas e amadurecimento tardio – “é como os dióspiros, cai a folha e o fruto fica” –, o mercado vai valorizar os espadeiro, mas a sua preferência vai para a casta avesso, que “tem acidez, grau, frescura e pH baixo para fazer vinhos longevos”. Apesar disso, gosta mais de fazer vinhos com mistura de castas, “que têm uma complexidade que não há nos varietais”.
Porque “há uma grande diversidade e soube manter as castas autóctones”, o decano da enologia dos Vinhos Verdes não tem dúvidas de que “a região tem futuro”. Mas com uma ressalva: “É preciso estratégia e foco, para valorizar o produto e trabalhar para o valor.”
À MESA
Restaurante Sabores da Quinta
Veade (Celorico de Basto)
Refeição: Sardinhas de escabeche, Fígado de cebolada, Feijão-fradinho com atum, Alheira, Dobrada; Costela mendinha com batatinhas e arroz escuro; Javali estufado
Vinhos: Quinta da Raza Grande Escolha (Quinta da Raza), Muros do Corgo Grande Escolha (Adega Molares)
Este artigo foi publicado na edição n.º 12 da revista Singular.
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