Zapata e a Revolução Portuguesa

O embaixador mexicano comunicou: “Esta revolución se sintió demasiado perfecta”. Não acreditou que os capitães se tivessem despedido de Marcelo Caetano, no aeroporto, com um “V.ª Excelência”.

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Há umas semanas, li no jornal PÚBLICO o duro testemunho de Hermínia Vicente. Muito antes da Revolução de Abril, aos 11 anos, já ela tinha deixado a escola e trabalhava o dia inteiro no campo, a ganhar uma ninharia. Toda a sua família trabalhava em condições terríveis, numa herdade junto a Alcácer do Sal, sob a chuva de inverno e o sol escaldante do verão. Casou-se aos 15 anos para escapar dessa impiedosa situação, e “foi pior”. Insurgir-se não era opção para ninguém.

É inevitável relembrar a situação dos camponeses mexicanos (“peones”) antes da revolução de 1910. Ganhavam tão pouco que apenas acumulavam dívidas nas lojas das herdades (“haciendas”), sem possibilidade de fugir. O liberalismo extremo durante o longo governo do General Porfirio Díaz (1876 – 1911) permitiu a ocupação de terrenos baldios e comuns, bem como a apropriação ilegal de propriedades privadas. Os latifúndios floresceram, como em certas regiões de Portugal, mas a uma escala gigantesca. Nessa época, 830 latifundiários detinham 97% da área rural. O proprietário mais rico, Luis Terrazas, governador de Chihuahua, possuía terras de uma extensão acumulada inimaginável de 2 milhões de hectares, ou seja, 20 mil quilómetros quadrados.

Hermínia Vicente despertou politicamente depois do 25 de Abril. “A terra a quem a trabalha” foi o slogan que o PCP difundiu no Alentejo e além. No Verão de 1975, Hermínia Vicente chegou a ocupar, juntamente com outras mulheres, uma propriedade para convertê-la numa cooperativa. “La tierra es de quien la trabaja” é uma frase amplamente atribuída ao líder revolucionário do sul do México, Emiliano Zapata, embora a sua origem seja ainda mais antiga. O atual brasão de armas do estado de Morelos, de onde era originário, contém dois lemas: “Tierra y libertad” (lema de alguns utopistas russos do séc. XIX, adotado por Zapata) e “La tierra volverá a quienes la trabajan con sus manos”.

É interessante comparar a revolução portuguesa com a mexicana, apesar de estarem separadas por um abismo – seis décadas, ideologias e estruturas políticas e sociais profundamente diferentes, em Portugal havia uma guerra colonial em curso. A mexicana foi longa e sangrenta, com diferentes fases e inúmeras mortes, incluindo a dos seus principais caudilhos: Francisco Madero, Emiliano Zapata, Pancho Villa, Venustiano Carranza, Álvaro Obregón.

Em Portugal, que contraste de civilidade. O embaixador mexicano dessa época, Luis Gutiérrez Oropeza, que também era militar, comunicou à Secretaria de Relações Exteriores (o MNE mexicano) a 26 de abril de 1974: “Esta revolución se sintió demasiado perfecta”. Não acreditou que os capitães rebeldes se tivessem despedido do presidente do Conselho, Marcelo Caetano, no aeroporto, com um “V.ª Excelência…”.

Mas, ao estudar a Revolução dos Cravos, encontrei semelhanças interessantes com a Revolução Mexicana. Ambas começaram com um movimento político para derrubar um ditador longevo, ou o que restava de uma ditadura longeva. Ambos os regimes caíram rapidamente (nenhum quanto o português) e as liberdades políticas e direitos civis foram prontamente restituídas. Contudo, o sonho revolucionário não podia ficar por aqui: tinham-se acumulado, em ambos os países, a miséria e a injustiça, que obrigaram segmentos da sociedade a continuar a luta por outros meios. O vermelho do cravo de Abril prefigurava igualmente uma possível revolução social. Em Paris, os trabalhadores desfilavam todos os 1.º de Maio com esse cravo na camisola, e o vermelho simbolizava muitas das revoluções do mundo do século passado.

Entre os primeiros documentos enviados pela embaixada mexicana, encontra-se um recorte de jornal que informava sobre os vidros estilhaçados de várias instituições bancárias em Lisboa, aparentemente por armas de fogo, no dia seguinte à libertação. Os bancos tinham-se tornado um objeto de ódio por encarnarem a acumulação indevida de riqueza. Outra nota enviada pela embaixada, a 29 de abril, indicava que mil moradores das barracas no Bairro da Boavista (Lisboa) ocuparam casas vazias. Esta foi a justificação de um dos ocupantes: “Ouvimos dizer na televisão que agora havia liberdade. Não estava ninguém a viver nestas casas. Nós não fizemos mal a ninguém”.

Numa revolução, ocorrem movimentos sociais espontâneos (a ocupação de casas vazias foi, sem dúvida, uma oportunidade), outros são enquadrados por partidos políticos e ideologias. Mário Soares declarou, no seu regresso a Portugal, como que parafraseando Zapata: “É preciso que a riqueza seja de quem realmente trabalha e não de parasitas e banqueiros”. Por seu turno, o líder comunista, Álvaro Cunhal, proclamava no campo: “Chegará o dia em que a reforma agrária entregará a terra dos grandes latifundiários àqueles que a trabalham”.

No México, Emiliano Zapata empunhou a bandeira agrária, exigindo a restituição de terras aos pequenos proprietários, assim como a reconstituição da propriedade comunal. Era um homem do campo, habilidoso com o cavalo como poucos, chegando inclusive a tourear à portuguesa, por diversão. Leu o príncipe Kropotkin e foi influenciado pelo movimento anarquista internacional. No entanto, ao contrário de Portugal, a posse comunal existia no mundo indígena antes da chegada dos espanhóis, e estes tinham-na respeitado até certo ponto. A utopia de Zapata era voltar ao passado. Figura trágica, como escreveu o grande historiador Enrique Krauze, “Zapata não quer chegar a nenhum lado: quer permanecer”. Foi assassinado em 1919. Todavia, o seu legado permaneceu: a nova constituição de 1917 incluía a distribuição de terras a quem não as tinha.

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Revoltosos, provavelmente do estado de Morelos, acompanhados pelas mulheres, apoiantes de Emiliano Zapata, depois de este ter apresentado o Plano de Ayala, para a distribuição de terras, em Novembro de 1911 DR

Tem-se dito que ambas as revoluções ficaram inacabadas, que as aspirações sociais foram parcialmente cumpridas. Portugal não se tornou, tal como o México, num “país de rosas”, esperança essa que foi formulada por um trabalhador agrícola diante das câmaras da RTP, em 1975. Houve reforma agrária nos dois países; no México, duas em cada três haciendas desapareceram. Mas foi a introdução da maquinaria e a produção moderna no campo, bem como o êxodo rural e o Estado de bem-estar social que alteraram verdadeiramente as condições de vida dos camponeses em ambos os países.

A história está repleta de ironias. Os habitantes do Bairro da Boavista (eles novamente) ocupam a Quinta de São João, propriedade do famoso cardiologista Manuel Eugénio Machado Macedo, a 12 de abril de 1975. Num comunicado, esses adeptos do “poder popular” e “inimigos do capitalismo” decidem criar um “Centro Médico – Social posto ao serviço da população do Bairro da Boavista”. Graças aos seus contactos privilegiados, o dr. Machado Macedo conseguiu que o Exército expulsasse, no dia seguinte, os ocupantes ilegítimos da quinta, e decide vendê-la imediatamente. Naqueles tempos de incerteza, só um governo estrangeiro poderia comprar uma propriedade assim, protegido pela imunidade diplomática. O governo do México foi o sortudo que a adquiriu, e hoje, na Estrada de Monsanto, serve tanto como Embaixada quanto como residência do embaixador.

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