Plástico: lobbyistas da indústria petroquímica inundam negociações para tratado da ONU

Há o dobro de representantes da indústria nas negociações para haver um tratado do plástico em relação ao de delegados dos Estados Insulares do Pacífico, os que mais sofrem com este tipo de poluição.

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Uma lixeira no Líbano: grande parte dos plásticos acaba em lixeiras, sem ser tratado ALI HASHISHO/REUTERS
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Cerca de 200 representantes de lobbies da indústria química e petrolífera registaram-se para participar das negociações no Canadá desta semana para elaborar sobre o primeiro tratado global para conter a poluição por plásticos. São mais do que os representantes da União Europeia que participam nesta reunião, sob a égide das Nações Unidas.

Segundo uma análise feita pelo Centro Internacional de Legislação Ambiental (CIEL, na sigla em inglês), uma organização pública sem fins lucrativos com sede em Washington, nos Estados Unidos, o número de lobbyistas nesta ronda de negociações – a quarta – deu um salto de 37% em relação ao encontro anterior, em Novembro, em Nairobi, no Quénia, onde estiveram presentes 143 representantes da indústria.

A União Europeia enviou uma delegação de 180 representantes às negociações que decorrem em Otava, no Canadá, mas o número de lobbyistas da indústria petroquímica registado na reunião, 196, é superior. Incluem representantes de empresas como a Exxon Mobil e Dow.

Os pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento do Pacífico, que mais sofrem com as consequências das alterações climáticas e da poluição, enviaram 73 representantes – há praticamente dois lobbyistas por cada representante desta região vulnerável, salienta um relatório do CIEL, a que o Azul teve acesso.

“É irónico que os Pequenos Estados Insulares do Pacífico, que são dos que mais sofrem com o impacto duplo da poluição por plástico e da emergência climática, estejam mais uma vez em minoria face aos representantes das empresas que estão a prejudicá-los directamente”, afirmou Jacob Kean-Hammerson, da organização Environmental Investigation Agency, citado num comunicado de imprensa.

“Esta discrepância mostra como a possante presença dos lobbyistas da indústria lança a sua sombra sobre as negociações, e prova que o acesso não é igual nem justo”, concluiu Kean-Hammerson.

Momento decisivo

As negociações para que exista um tratado para conter a poluição por plástico encontram-se num momento crucial. Falta apenas mais uma ronda de negociações para se chegar a um texto final aceite por todos os países – pois as conversações iniciaram-se ao abrigo de uma resolução aprovada pela assembleia do Programa das Nações Unidas para o Ambiente em 2022, que estabelecia como meta que este tratado estivesse pronto até 2024.

Produzem-se 430 milhões de toneladas de plásticos todos os anos e dois terços são produtos com uma vida útil curta, que rapidamente se transformam em lixo, uma grande parte dele não tratado, que se deposita na natureza e até nos nossos corpos, com consequências para a nossa saúde e a do ambiente

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Refinaria do Parque de Energia e Químicos da Shell Rheinland em Godorf, perto de Colónia, Alemanha REUTERS/Wolfgang Rattay

Muitos países, cientistas e organizações ligadas à defesa do ambiente defendem que é preciso criar um documento juridicamente vinculativo – e que não se baseie apenas em contribuições voluntárias, como é o Acordo de Paris – para que seja eficaz. Dizem ainda que o tratado deve cobrir todo o ciclo de vida do plástico, desde a produção até à eliminação ou reutilização, e tem de contemplar reduções na quantidade que é fabricada. Não basta focar-se apenas na última fase, a da reciclagem.

Mas estes princípios vão contra o que pretendem alguns dos grandes grupos da indústria química e petrolífera, bem como países que dependem dessas indústrias. É preciso sublinhar que a principal matéria-prima para produzir plásticos é o petróleo, logo, além de estar em causa a poluição por plástico, que atulha os oceanos e os países e se imiscui mesmo nos nossos corpos, esta é também uma questão climática. Isto porque, reduzindo a produção de plásticos, haverá menos emissões de gases com efeito de estufa lançados para a atmosfera, o que ajudará a controlar as alterações climáticas.

Estes lobbies opõem-se a qualquer tratado da ONU que imponha limites de produção mais rigorosos ou a eliminação progressiva dos produtos químicos mais tóxicos usados no fabrico dos plásticos. Estes grupos de pressão são acolhidos por alguns Estados que dependem também da produção de combustíveis fósseis, ou têm uma forte componente da indústria química na sua economia.

Por exemplo, 16 destes lobbyistas da indústria petroquímica estão registados nas delegações de nove países diferentes: Malásia (quatro), Tailândia (três), Irão (dois), República Dominicana (dois), e um na China, Cazaquistão, Kuwait, Turquia e Uganda, salienta o CIEL.

Embora mais de 4000 pessoas se tenham inscrito para participar nas conversações, grupos da sociedade civil afirmaram que a forte presença de representantes de indústrias que seriam alvo de novas regulamentações pode prejudicar o processo de negociação, que decorre até ao início da próxima semana.

“A presença de actores na sala que são responsáveis pela geração desta crise cria desequilíbrios de poder que impedem o progresso”, disse Rachel Radvany, activista para a saúde ambiental do CIEL, citada no comunicado de imprensa.

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Uma instalação exibida por activistas perto do Shaw Centre, local das penúltimas negociações para o primeiro tratado global sobre plásticos, em Otava, Ontário, Canadá, a 23 de Abril de 2024 REUTERS/Kyaw Soe Oo

O Conselho Internacional das Associações Químicas, composto por membros das indústrias de plásticos, petroquímica e química, reagiu à análise do CIEL, afirmando que as organizações não-governamentais (ONG) estariam presentes em maior número do que os representantes da indústria.

“Embora estejamos em muito menor número do que o total de 2202 membros da comunidade de ONG, incluindo 166 delegados de ONG internacionais de maior dimensão [...], valorizamos a ênfase na participação das partes interessadas para ajudar a alcançar o nosso objectivo comum de acabar com a poluição por plásticos”, afirmou o grupo num comunicado citado pela agência Reuters.

Os lobbyistas registados da indústria química e dos combustíveis fósseis – que incluem representantes de empresas como a Exxon Mobil e Dow – são mais numerosos do que os 180 representantes diplomáticos das delegações da União Europeia, segundo a análise.

“O Programa das Nações Unidas para o Ambiente deu as boas-vindas às empresas petrolíferas nas negociações do tratado para os plásticos, mas manteve à distância apanhadores de lixo, grupos que estão na linha da frente da lua contra a esta poluição, líderes de comunidades indígenas e outras pessoas que são as que maior impacto sofrem por causa da crise da poluição por plástico”, afirmou Ana Lê Rocha, da Aliança Global para Alternativas aos Incineradores (GAIA na sigla em inglês), citada no comunicado de imprensa.

Grupos que representam sectores mais especializados da indústria dos plásticos também estão a marcar presença em Otava, organizando eventos e recepções à margem das negociações.

O Vinyl Institute, que representa a indústria do PVC/vinil, organizou um cocktail durante as negociações de Novembro em Nairobi. O evento tinha como objectivo atrair delegações de países-chave, incluindo do Departamento de Estado dos EUA, de acordo com emails e gravações obtidos pelo grupo de vigilância Documented e aos quais a Reuters teve acesso e pôde analisar.

"Decidimos que ao entrar no INC-3 [as negociações em Nairobi] queríamos ser simpáticos", disse Dom Decaria, director técnico do Instituto do Vinil, num discurso proferido num evento da indústria em Austin (EUA), a 6 de Dezembro.

"Queríamos ter presença, mas também queríamos ser o grupo com o qual as pessoas destes Estados-membros se sentissem confortáveis a tomar uma chávena de café." Decaria disse à Reuters nesta semana que quer fazer parte das negociações para ver até onde as posições podem convergir. “A nossa missão, neste momento, é ver como é que nós, enquanto indústria, podemos chegar a um terreno comum com todas as partes interessadas”, declarou.

Queixas semelhantes sobre a forte representação dos lobbyistas da indústria dos combustíveis fósseis têm sido feitas nos últimos anos nas conferências anuais da Convenção do Clima das Nações Unidas (a última foi em Dezembro do ano passado, nos Emirados Árabes Unidos, a COP28).

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