Os Estados cometem atos de terrorismo?

A maioria das definições académicas de terrorismo tendem a privilegiar as ações de grupos não-estatais – como a al-Qaeda ou o Daesh – e ignoram o Estado como um possível agente de terrorismo.

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No ano de 2016, a 400 quilómetros da cidade de Faluja, no Iraque, uma unidade de forças especiais do Exército iraquiano encontrava-se em posição de combate, pronta a atuar assim que necessário. A missão? Auxiliar na tomada de Mossul e deter combatentes do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh), procurando obter intelligence necessária. Entre outubro e dezembro daquele ano, o fotojornalista Ali Akardy acompanhou as operações desta unidade que ficou conhecida por Emergency Response Division (ERD). Para Akardy, estes militares, apoiados pelas forças ocidentais da Coligação Global contra o Daesh, eram heróis que lutavam contra o terrorismo, ultrapassando divisões religiosas.

Porém, no decorrer das operações, presenciou um cenário que julgava impensável: inocentes torturados – com técnicas semelhantes às utilizadas pelos EUA na prisão iraquiana de Abu Ghraib –, acusados injustamente de crimes que não tinham cometido, como ligações ao Daesh. Fios elétricos dos pés à cabeça, estrangulamentos, tortura sistemática, facas, armas, tudo foi utilizado sobre estes homens. Em diversas circunstâncias, vários foram expulsos de suas casas, detidos e violentados, apenas para que os militares pudessem lá voltar e abusar sexualmente das mulheres dos suspeitos. Uma prática repetida, sem arrependimento, contada em confidência secreta ao fotógrafo. O trabalho fotojornalístico correu mundo em 2017, tendo o Iraque aberto uma investigação sobre o sucedido. Foi recontado pelo autor em 2023 na VICE News.

A ERD apressou-se a desmentir o sucedido, alegando que eram “imagens fabricadas”. O representante norte-americano da Coligação Global contra o Daesh procurou defender a unidade iraquiana, referindo que a proteção dos civis era uma prioridade para as forças militares, mas também alertou que os comportamentos contrários a essa prática deviam ser investigados e sancionados. O resultado da denúncia? O fotógrafo recebeu ameaças de morte e refugiou-se na Europa com a família. O Ministério do Interior iraquiano reconheceu alguns crimes cometidos, mas nenhum dos soldados foi sancionado. Aliás, “muitos foram condecorados e promovidos”, disse Arkady em entrevista (2019).

Este caso é o ponto de partida para a reflexão deste artigo: a violência perpetrada pelos Estados também pode ser considerada terrorismo? A maioria das definições académicas de terrorismo tendem a privilegiar as ações de grupos não-estatais como a al-Qaeda ou o Daesh e ignoram o Estado como um possível agente de terrorismo. O “terrorismo de Estado” é um assunto muito controverso entre os especialistas de terrorismo, identificando-se diversas abordagens sobre esta matéria. Uma das abordagens reconhece que os Estados também cometem atos de terrorismo (ou que são possíveis perpetradores de atos de terrorismo). No nosso entender, é possível identificar argumentos históricos e jurídicos que validam esta posição. Destacamos quatro argumentos.

Em primeiro lugar, pela existência histórica de ações violentas praticadas pelos Estados, sob motivações políticas e ideológicas. Para Rory Cox, em The Cambridge History of Terrorism (2021), “historicamente, a maior parte da coerção exercida pelo terror tem sido perpetrada por Estados”. Por exemplo, salientam-se as ações perpetradas pelos poderes europeus durante o colonialismo do século XIX, ou pelos regimes totalitários no século XX. Note-se, aliás, que o próprio conceito de “terrorismo” tem origem na violência estatal, em resultado do regime de Robespierre após a Revolução Francesa de 1789. Conhecido por “La Terreur”, caracterizou-se pelo uso arbitrário da violência e de métodos altamente repressivos, incluindo execuções em massa.

Em segundo lugar, porque, na história mais recente, identifica-se um conjunto de ações que se podem classificar como atos de terrorismo. De forma simplificada, os especialistas de terrorismo reconhecem duas principais formas de “terrorismo de Estado”: (1) uso da violência direta contra uma população, nacional ou estrangeira (seja através de forças militares, polícias ou agências de informações); e (2) apoio indireto através do financiamento a grupos paramilitares ou organizações terroristas. O caso supracitado é um possível exemplo.

Em terceiro lugar, porque a imunidade jurisdicional dos Estados isto é, um Estado não poder estar sujeito à jurisdição de outros Estados não é absoluta. Isto significa que esta imunidade não pode ser invocada “em caso de danos causados a pessoas e bens”, o que, no nosso entender, poderá abrir um precedente no âmbito do reconhecimento da violência terrorista estatal. Repare-se que, no conjunto dos países Ocidentais, os Estados Unidos da América e o Canadá designaram um conjunto de países como “patrocinadores do terrorismo”, incluindo a Síria, Irão, Coreia do Norte e Cuba. Na prática, esta designação constitui uma exceção à imunidade jurisdicional, e as relações diplomáticas ficam condicionadas por restrições de natureza comercial, financeira ou outra.

Em quarto e último lugar, porque no atual contexto geopolítico evidencia-se um conjunto de práticas por parte de Estados soberanos que constituem violações ao Direito Internacional e que podem ser consideradas “terrorismo de Estado”. As ações perpetradas pela Federação Russa no contexto da guerra da Ucrânia, iniciada a 24 de fevereiro de 2022, podem enquadrar-se neste conceito. Salientam-se duas razões.

Primeiro, porque a Rússia tem bombardeado civis de forma deliberada no intuito de causar terror e intimidar populações, requisitos fundamentais do terrorismo. O massacre em Bucha pelas forças russas é um dos exemplos mais chocantes desta prática.

Segundo, porque já foram adotadas diversas resoluções que designam a Rússia como um “Estado patrocinador do terrorismo”, nomeadamente por parte do Conselho da Europa, Parlamento Europeu, e de quatro Estados-membros da UE (Lituânia, Letónia, Estónia e Polónia). Apesar de não serem vinculativas, estas resoluções, a par das sanções impostas pela UE, contribuem para reforçar as evidências de violência terrorista estatal.

A guerra da Ucrânia não é o único conflito onde se verificam atos de terrorismo perpetrados por Estados. Na Faixa de Gaza, as ações de Israel também podem ser enquadradas neste conceito.

Enquadrar as ações da Rússia e de Israel no âmbito do terrorismo é importante, simbólico e significativo. No nosso entender, existem elementos de terrorismo na violência perpetrada. Porém, este enquadramento pode não ser útil do ponto de vista sancionatório. Primeiro, porque não existe uma definição jurídica de “terrorismo de Estado”. Segundo, porque o ataque deliberado contra civis já é uma prática proibida pelo Direito Internacional Humanitário (DIH). Dito de outro modo, numa guerra só é permitido atacar infraestruturas militares. Esta é uma norma sintetizada pela “Cláusula Martens”, na qual os beligerantes em um conflito devem atuar sob princípios humanitários. Não deixa de ser irónico que esta norma tenha tido como inspiração um diplomata russo e que a primeira conferência para a resolução pacífica de conflitos (Haia, 1899) tenha sido realizada também por iniciativa russa, sob os auspícios do Czar Nicolau II…

Além disso, o DIH prevê outras classificações, porventura mais adequadas, pelas quais a Rússia e Israel podem ser julgados, como é o caso de “crimes contra a Humanidade”; “crimes de guerra”; “crime de agressão”, e “genocídio”. A maioria destes crimes implica atos de terrorismo e, quer no caso da Ucrânia quer no de Gaza, a presença de crimes internacionais parece indiscutível. É por estas razões que, para alguns autores, o “terrorismo de Estado” não tem grande utilidade prática, considerando-o praticamente um sinónimo destas categorias.

Até ao momento (2024), nenhum Estado reconheceu oficialmente (isto é, de forma vinculativa) a Rússia ou Israel como “Estados patrocinadores de terrorismo”. No entanto, os EUA já acusaram a Rússia de “crimes contra a humanidade”, e a África do Sul acusou Israel de práticas de “genocídio” junto do Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas. No contexto dos conflitos em questão, apenas atores não-estatais como o grupo Wagner (atualmente ativo no Sahel) e o Hamas são reconhecidos internacionalmente como grupos terroristas. No caso da Wagner, o Reino Unido foi o primeiro país ocidental e o único até à data a classificar a Wagner como “organização terrorista” (2023). Os EUA classificam-na como “organização criminosa transnacional” (2023).

Seja qual for a classificação dada a um Estado e às suas ações enquadrada no âmbito do terrorismo ou dos crimes internacionais importa notar que essa posição implica também um conjunto de consequências políticas e diplomáticas. Em última instância, o conceito de “terrorismo de Estado” é fumo sem fogo: o enquadramento é relevante e denunciador das práticas ilegais, mas tem pouca relevância sancionatória. Não obstante, o reconhecimento do Estado como um possível agente de terrorismo deverá ultrapassar uma mera categoria teórica.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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