JMJ

O primeiro discurso do Papa foi tão enriquecedor que intimamente o abracei em sinal de gratidão, e sempre que se anunciava um outro, levava comigo uma folha e um lápis para registar as suas palavras.

De educação católica praticante, permaneço cristã, com muitas dúvidas, abraçando convictamente uma imagem de Cristo, fruto da leitura dos Evangelhos, na sua doutrina idealista e de grande humanidade, bem como da visão de Ernest Renan, da qual partilho e cuja obra li, com relevo para Vida de Jesus, numa edição relíquia de 1894 (Lello&Irmão-Editores). Assumo estar em colisão com uma parte da Igreja que teima pela tristeza e pelo sofrimento, que persiste na cultura da culpa e silenciou abusos a crianças e jovens, mantendo o divórcio com o discurso político, como se o cumprimento de muitos ideais de Cristo não o implicasse forçosamente.

Mas há sempre o reverso da medalha, sendo imperioso que lembre figuras cujas intervenções marcaram e continuam a marcar os que os ouvem, propiciando uma reflexão que poderá responder a dúvidas: Januário Torgal Ferreira, Anselmo Borges, José Manuel Pereira de Almeida. Haverá muitos mais nomes, mas refiro apenas os da minha experiência directa e até a de ex-alunos, militares, do Ensino Nocturno, que na altura me testemunharam o fascínio pelas homilias do então capelão, Januário Torgal Ferreira (bispo emérito das Forças Armadas e Segurança).

Estes nomes ecoaram em mim a voz do outrora pároco de Santa Maria de Belém (Jerónimos), Padre Felicidade (1925-1998), determinante para a minha admiração por João XXIII, sendo ainda adolescente, e para a fundamentação da minha religiosidade cristã e de uma escolha política. Era sem medo que o Padre Felicidade criticava a guerra colonial, se insurgia contra a censura, a polícia política ou a exploração laboral, acompanhando os jovens nos seus vários problemas, muitos relacionados com a guerra, invocando continuamente a boa-nova de Jesus, e por essa sua postura inquieta suportou, durante algumas das suas homilias, e presenciei-o, ataques verbais em altos gritos e até ameaças físicas de alguns crentes. Afastado compulsivamente, em 1968, pelo cardeal Cerejeira, foi preso pela PIDE. em 1970. Em carta dirigida a Marcelo Caetano, escreverá Cerejeira (8/10/68): "[…] dele nada restará e tenho pressa, como V. Ex.ª, de acabar com isto."

Um pouco desligada do significado da figura papal, devo confessar, e já o fiz antes, a minha admiração por João XXIII, também por João Paulo II, e de forma ainda mais intensa, porque difíceis e intensas são as situações, nacionais e internacionais, que nos têm acompanhado nestes últimos anos, por Francisco. A admiração por este Papa tem sido em crescendo e iniciou-se com o nome escolhido, que me pareceu desenhar um rosto, um coração e uma mente, intensificando-se, e não faço culto da personalidade, pelo vigor das suas tomadas de posição relativamente a inúmeras situações sociais gritantes, algumas delas tabu, posições que estas Jornadas reforçaram através das suas mensagens, simples e repletas de imagens, evidenciando-se ainda o seu fraterno contacto com as pessoas.

Sensibilizou-me muito o seu recurso à literatura portuguesa, citando, entre outros, Pessoa, Sophia e Saramago, sendo de sublinhar a expressão pessoana de "saudades do futuro" que o Papa referiu, obviamente, em contexto diferente, mas com a mesma força simbólica. Ao preferir a linguagem metafórica à utilitária, num claro reflexo do texto bíblico, também ele um texto literário, e ao sublinhar a importância dos mais velhos que recebem e marcam os mais novos, o Papa deu indirectamente razão não só a quem no Ensino luta para que o funcional não predomine sobre o literário onde a "vida autêntica" se expõe, suscitando perguntas de cuja resposta não podemos desistir, mas também a quem persiste na defesa dos autores clássicos, dos mestres, dos que influenciaram os vindouros, dos que alimentaram e continuam a alimentar as raízes de uma identidade.

Seria ainda crucial que, de vez, se interiorizasse a voz sapiente do Papa que, fazendo jus à beleza do futebol, salientou o treino que exige um golo, metáfora do esforço e do trabalho que requer o êxito de qualquer caminho: Quanto treino há por detrás de um golo!, disse, acrescentando: Quanto trabalho por detrás de uma canção que nos deixa emocionados, quanto estudo por detrás de uma descoberta importante.

O seu primeiro discurso foi tão enriquecedor que intimamente o abracei em sinal de gratidão, e sempre que se anunciava um outro, levava comigo uma folha e um lápis para registar as suas palavras (advertências, conselhos, alertas) cujo carácter simbólico se ajustava ao "Belo", ou seja, ao que ilumina e revela, fazendo-nos pensar. Esperar-se-á que a Igreja honre a vontade do Papa, tão em sintonia com o Evangelho de Jesus, intervindo de forma mais pragmática e eficiente, a favor de todos os que têm "fome e sede de Justiça" e também em defesa da nossa "casa comum" que ameaça ruir.

Partilho convosco algumas das frases de Francisco que a coerência exige que sejam forçosamente digeridas pelos políticos, com destaque para aqueles que elogiaram e receberam sorridentes o Papa, mostrando-se publicamente solidários com as suas ideias. Certamente que quando as ouviram, e o mesmo se aplicará a todos nós, terão sentido um toque de alerta que deverá conduzir, assim aconteça, a uma reflexão séria sobre tantas decisões já tomadas e que poderão ser alteradas. Os próximos tempos di-lo-ão: Não estamos no mundo para fazer servir os nossos interesses, mas para nos desinquietarmos indo ao encontro de quem precisa de nós; Cada um é um rosto e não um número; Nunca se cansem de perguntar; Cuidado com os egoísmos disfarçados de amor; O único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo é para a ajudar a levantar-se; Temos de sujar as mãos para não sujar o coração; Quantos lobos se escondem atrás de sorrisos?

Recordando algumas notícias, visualizo com nitidez esses "lobos", sempre sorridentes e bondosos, que rondam à volta de tantas situações, de que escolho: o chumbo recente da proposta do PAN (PS, PSD, Chega e IL) "para adaptar a legislação laboral à realidade dos fenómenos climáticos extremos", medida que outros países europeus já avançaram; a inércia de instituições estatais face a milhares de imigrantes que continuam ilegais, descontando, no entanto, para a Segurança Social, e muitas vezes em trabalho-escravo, pelo número de horas que lhes é exigido (as áreas do turismo, da agricultura e da construção civil são exemplos crassos); meses e meses de negociações vãs com ministérios (destaco professores, médicos e polícia); autorizações (imobiliárias, agrícolas, turísticas, …) que lesam superlativamente o ambiente, acentuando o problema climático; a resposta dada aos inúmeros pedidos de apoio do Padre Francisco Crespo, do Centro Social Paroquial de São Vicente, cuja acção conheço bem e que é, com a sua equipa, um belo exemplo de quem "sujou as mãos": "Falaremos depois…"

Os flagrantes de uma estreiteza de coração que a coerência exige que se torne o "coração dilatado", descrito pelo Papa.

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