A madeira morta é essencial para o restauro da natureza na Europa, e até em Portugal
O ponto 2 do artigo 10.º da Lei de Restauro da Natureza (que tanto tem dado que falar nos últimos meses) aparenta ser um ponto fraturante para a aprovação desta lei por parte dos eurodeputados nacionais nomeadamente do PSD.
Este artigo 10.º, que refere as oportunidades de restauro ecológico das florestas europeias, indica que “os Estados-membros devem alcançar uma tendência crescente a nível nacional de cada um dos indicadores que se seguem em ecossistemas florestais (…): (a) Madeira morta em pé; (b) Madeira morta caída; (c) Percentagem de florestas com estrutura etária irregular; (d) Conectividade florestal; (e) Índice de aves comuns de zonas florestais; (f) Reservas de carbono orgânico”.
Trabalho e falo da gestão florestal sustentável e da importância da madeira morta desde 2016, graças a um escaravelho muito especial que depende dela. Desde então que me questionam sobre a relação entre a madeira morta e os incêndios, e a resposta foi evoluindo ao longo dos anos (daí este longo artigo).
Fico feliz por, finalmente, se discutir a nível governativo ações concretas em prol da gestão sustentável das florestas para que sejam restauradas, e que assim se tornem mais diversas, conectadas umas às outras e onde árvores jovens, veteranas, vivas e mortas ocupam um território cada vez mais heterogéneo e resiliente. Esta heterogeneidade é essencial para criar dinâmicas naturais que potenciam a biodiversidade e a provisão dos serviços de ecossistema essenciais à nossa qualidade de vida, como o sequestro e armazenamento de carbono, assim como a regulação de ciclos hídricos, a polinização e a produção sustentável de matérias-primas.
Fico, por outro lado, apreensivo que, para o PSD (e para grande parte dos governantes e gestores de território), seja incomportável que florestas heterogéneas com “madeiras secas e mortas” possam potenciar a biodiversidade e ajudar a restaurar as florestas nacionais, sem pôr em risco as populações. É ainda afirmado, sem dados factuais que, “aumentam exponencialmente o risco de incêndio” e vão contra o DL n.º10/2018 (criado após os grandes incêndios de 2017, para reforçar a segurança das populações e dos seus bens através das limpezas florestais nas faixas de gestão de combustível).
Ver o mundo a preto e branco, neste caso, apenas com duas opções: com ou sem madeira, impossibilita que se tente integrar na mesma floresta a biodiversidade, o clima, a gestão de riscos, a qualidade de vida das pessoas e até o corte de árvores para rendimento dos proprietários (até porque é possível). Dificilmente conseguimos integrar na gestão da mesma parcela todas estas finalidades que a floresta nos pode dar. Leis “simplistas”, com um único foco prioritário (a ser, que sejam as pessoas), são muitas vezes elaboradas e utilizadas (erroneamente) como a solução para tudo, inclusive para questionar as dinâmicas da natureza, como muitas vezes é utilizado o DL n.º10/2018.
Ao limitar a integração de novas ideias que trazem factos para o mundo real, bloqueamos também a evolução natural dos mecanismos de governança a todas as escalas. Até no caso desta lei, que protege bem as pessoas (como sempre foi pensada), se verificam imensas falhas na gestão do território, falhando na redução dos incêndios em Portugal desde a sua implementação (com 2022 a ter a segunda pior época de incêndios florestais desde 2000) e na gestão da biodiversidade, estando mais do que demonstrado que a remoção de material lenhoso em decomposição e de árvores veteranas é um dos principais motivos de declínio da biodiversidade florestal mundial.
Usar uma lei vigente para bloquear a criação de outra é contraprodutivo numa visão de evolução constante da governança territorial. Em vez de bloquear esta lei do restauro da natureza pelos seus conteúdos, podemos compreender melhor as medidas apresentadas e repensar como conseguimos gerir a floresta portuguesa em todas as suas vertentes, sem descuidar a segurança das pessoas, mas também sem as privar do que é seu por devido direito, a biodiversidade, os ecossistemas e todos os serviços que nos prestam.
Como biólogo também é este o meu papel, esclarecer dúvidas e explicar estas medidas, e como realmente nos podem afetar, quer em termos de qualidade de vida, quer da promoção da biodiversidade. E que tal se começarmos por saber o que é a madeira morta?
Segundo a FAO, o termo “madeira morta” é definido como toda a biomassa lenhosa não viva com diâmetro superior a 10 centímetros que se encontra em pé, no chão ou no solo, em árvores vivas ou mortas, inclusive raízes mortas e tocos. Esta distinção de dimensões (ausente na nossa lei nacional) é essencial para conseguirmos discutir leis que conciliam a gestão de risco com a promoção da biodiversidade.
Qual a sua importância?
A madeira morta é essencial para cerca de 20-30% das espécies que vivem nas florestas mundiais. É essencial como habitat, abrigo, fonte de alimento para aves, morcegos e outros mamíferos e é particularmente importante para a maioria menos visível das espécies que habitam a floresta: insetos, fungos e líquenes que a utilizam para levarem a cabo os seus ciclos de vida. A madeira morta e a sua biodiversidade podem ainda aumentar a produtividade florestal e os serviços de ecossistema provenientes destes habitats, como a estabilização das florestas e o armazenamento de carbono. Na Europa, cerca de 18% dos escaravelhos relacionados com madeira morta estão em risco de extinção, principalmente por causa das limpezas florestais (inclusive para biomassa) e do corte de árvores de grande porte, mas também pela crescente urbanização e destruição de habitats.
Madeira morta é normalmente encontrada em maiores quantidade em florestas primárias ou virgens (que são também extremamente raras nos países mediterrâneos). Segundo o último relatório sobre o estado das florestas europeias, as florestas europeias têm em média 11.5m3 de madeira morta por hectare. Em Portugal temos apenas 2,3m3/ha, sendo o segundo país europeu com menos madeira morta disponível. Também se sabem os valores mínimos identificados para que as florestas sejam resilientes — pelo menos 10 m3/ha, sendo o ótimo entre 20-50m3/ha para florestas como as que temos em Portugal e na maior parte da Europa. Bem… compreende-se facilmente a necessidade de uma lei de restauro que fale do aumento de madeira morta à escala continental.
Além do papel no suporte da biodiversidade, a madeira morta é, à escala mundial, responsável por armazenar cerca de 8% do carbono florestal, tendo a sua remoção e destruição um impacto significativo a nível climático.
Qual a relação da madeira morta com os incêndios?
Ainda na semana passada foi publicado um relatório pela Comissão Europeia focado na relação das florestas primárias e da madeira morta com os incêndios.
As principais conclusões:
-
São as florestas primárias as que são menos suscetíveis/mais resilientes a grandes distúrbios como incêndios e pragas em comparação a florestas de monocultura. Isto é, graças à sua alta complexidade estrutural e funcional, com maior diversidade de espécies de árvores vivas e mortas, com diferentes idades e formas, concorrem para que estas florestas tenham microclimas mais frescos e húmidos (principalmente pela capacidade de retenção de humidade na madeira morta em decomposição);
-
O papel de madeira morta (tendo em conta que falamos de fragmentos com mais de 10 cm de diâmetro) na ignição de novos fogos é pequena;
-
Quanto maior o diâmetro de madeira morta em decomposição, especialmente se estiver em contacto com o solo, maior será a quantidade de humidade contida;
-
Pelo contrário, quanto menor for o diâmetro do material lenhoso em decomposição (principalmente se menores que 10 centímetros), menor será a capacidade de reter humidade, graças à sua alta relação superfície/volume, facilitando assim um rápido aquecimento, volatilização e ignição, permitindo, portanto, uma rápida propagação do fogo.
-
O papel da madeira morta nos incêndios é dependente do contexto e de cada região. Por exemplo, os longos períodos de seca podem afetar a sua decomposição, não retendo a humidade expectável na madeira. Consequentemente, após a propagação de um incêndio, a madeira morta demasiado seca pode contribuir significativamente para a energia liberada na frente do fogo, pois pode contribuir para o aumento do combustível.
Em resumo, é principalmente o material lenhoso fino e comum em qualquer tipo de florestas, que tende a contribuir para uma maior probabilidade de ignição e propagação do fogo. Mas a presença de madeira morta em zonas demasiado secas pode também ser um problema.
A floresta em Portugal
Em Portugal, o problema não é a madeira morta (até porque quase não existe) mas sim a desvalorização da floresta, que levou ao seu abandono generalizado, a uma redução da capacidade de herbivoria (natural ou por pastorícia) e a um consequente acumular de biomassa fina na paisagem (proveniente do acumular de ervas e arbustos finos, de um aumento da densidade de plantas exóticas invasoras e do “abandono” dos ramos e folhas que não interessam à indústria florestal após a extração da madeira) que alimenta todos estes incêndios.
O nosso DL n.º10/2018, que principalmente cria e implementa faixas de gestão de combustível, não foi criado para reduzir incêndios, mas sim para reduzir os danos dos incêndios sobre as populações. É uma lei que nos protege muito bem da morte, mas não fomenta a qualidade de vida nem a biodiversidade.
O problema não é este ponto da Lei do Restauro da Natureza, é a falta de compreensão que temos sobre os sistemas naturais, e de como a sua gestão sustentável e integrada pode melhorar tanto a nossa qualidade de vida (inclusive a nossa economia). O restauro dos nossos ecossistemas é essencial, e deve ser incentivado de todas as formas possíveis. Inclusive, devemos fomentar e incentivar a retenção ou criação de estruturas com madeira morta, de forma organizada e cuidada, para melhorarmos a natureza e consequentemente a nossa qualidade de vida. E isto aplica-se a toda a Europa, inclusivamente a Portugal. Há diversos projetos a estudar e a implementar soluções (exemplos na Europa central, países nórdicos e até em Portugal).
Por cá, temos de ter um pouco mais de cuidado na forma como usamos a madeira morta no restauro da natureza. Felizmente estamos cá para discutir o tema, implementar ações, monitorizar, avaliar os resultados e para tirarmos conclusões fidedignas sobre se a madeira morta (e os restantes pontos desta lei do restauro) é, ou não, benéfica ao nosso país (à biodiversidade será sem sombra de dúvida).
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico