Labirintos da intolerância

A destruição do passado, ou melhor, dos dispositivos sociais que vinculam a nossa experiência pessoal à das gerações passadas, é um dos fenómenos mais marcantes e lúgubres do nosso tempo.

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Corria o ano de 1992 quando o então Presidente francês François Mitterrand apareceu de forma súbita, não anunciada e inesperada, em Sarajevo, que já era o centro de uma guerra balcânica que iria custar cerca de 200 mil vidas. O calendário consignou historicamente o dia da visita de Mitterrand: 28 de junho.

Seu propósito era chamar a atenção da opinião pública internacional para a gravidade da crise na Bósnia. E, de facto, foi muito observada e admirada a presença do conhecido estadista – idoso e visivelmente frágil sob o fogo das armas portáteis e da artilharia. Porém, um aspecto da visita de Mitterrand, embora marcadamente fundamental, passou despercebido: a data. Por que o presidente da França escolhera aquele dia específico para ir a Sarajevo? Porque 28 de junho era o aniversário do assassinato, em Sarajevo, em 1914, do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria-Hungria, acto que poucas semanas depois levou à eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Efectivamente saltava aos olhos a relação entre data e lugar e a evocação de uma catástrofe histórica precipitada por um equívoco político e de cálculo. Mas, na altura, quase ninguém se deu conta disso, excepto alguns cientistas sociais, segmentos do jornalismo (profissional) e cidadãos europeus muito idosos, testemunhas e sobreviventes das duas guerras mundiais que tiveram lugar na Europa.

Ao termos em conta o que ocorreu nos Balcãs nos 1990, assim como as guerras do século XX, e relacionar os seus tristes episódios com acontecimentos do tempo presente, é inescapável inferir que se tem verificado um desvanecimento da memória histórica. A destruição do passado, ou melhor, dos dispositivos sociais que vinculam a nossa experiência pessoal à das gerações passadas, é um dos fenómenos mais marcantes e lúgubres do nosso tempo. Em geral, as pessoas vivem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação com o “passado público” da sua época.

Não surpreende então – ou pelo menos não surpreende muito – que episódios bárbaros, irracionais e anticivilizacionais estejam a acontecer atualmente com uma frequência constante. Guerra, ataques a escolas, intolerância a determinados grupos, etc. Ascensão de extremismos. Em suma, ódio e violência.

Talvez tenham existido (e existam) guerras que mobilizaram pulsões agressivas “limitadas”, voltadas, por exemplo, à própria defesa. Mas abundam os casos em que é impossível compreender (do ponto de vista analítico) o comportamento dos agentes participantes nos eventos violentos sem ver na postura pessoal deles um impulso extremamente potente de manifestações de ódio. O que a história tem registado, por exemplo, com a barbárie nazi, com os acontecimentos do leste da Ásia durante a Segunda Guerra Mundial e com a ação das ditaduras latino-americanas é uma explosão de agressão ilimitada, expressada pelo racismo, pelos assassinatos indiscriminados das populações civis, pelos estupros, pelos domínios e torturas de prisioneiros, etc. São manifestações de ódio que transcendem a motivação primária do acto violento. Labirintos da intolerância.

Trata-se de um fenómeno que, como Cornelius Castoriadis realçou, talvez só seja compreendido se a sua abordagem investigar as duas raízes do ódio, isto é: i) a tendência fundamental da psique a rejeitar (e, assim, a odiar) aquilo que não é ela mesma; ii) a quase-necessidade do fechamento da instituição social e das significações imagináticas que ela porta.

As raízes do ódio, portanto, são psíquica e social, existindo, contudo, uma relação entre ambas. Quer dizer, o vínculo entre elas incide sobre o processo de sociabilização imposto à psique, através do qual a psique é forçada a aceitar a sociedade e a “realidade”, desde que a sociedade cuide da primordial necessidade da psique: a necessidade sentido. De facto, ser socializado significa, antes e sobretudo, assimilar a sociedade como instituição e as suas significações imaginárias, tais como os deuses, os mitos, tabus, totems, parentescos, leis, Estado, etc.

Tendo em atenção essas e outras considerações, cabe uma nota interpelante no tocante às abordagens sobre o ódio de racismo. Chega a ser surpreendente que essas abordagens, em geral, não percebam uma característica básica e determinante do racismo. Trata-se da inconvertibilidade do outro, como, lembrando-o uma vez mais, disse Castoriadis. Entendamos.

Qualquer fanático religioso aceitaria, com alegria, a conversão dos infiéis; qualquer nacionalista “racional” se regozija quando territórios estrangeiros são anexados e seus habitantes assimilados. Contudo, esse não é o caso do racista. Os judeus alemães ficariam contentes em continuar como cidadãos do III Reich; a maioria deles o teria pedido e aceitado. Mas os nazistas não queriam saber disso. No caso do racismo, é precisamente porque o objeto do ódio deve permanecer inconvertível que o imaginário racista invoca aspectos pretensamente físicos (biológicos), logo irreversíveis, nos objetos de seu ódio: a cor da pele, dos olhos, os traços do rosto, etc., são sustentáculos básicos desse ódio.

Daí decorre também a forte rejeição do racista à mestiçagem, pois ela embaralha as fronteiras entre os “puros” e os “impuros”, mostrando-lhe que bastaria muito pouco para que ele próprio se encontrasse do outro lado da barreira do ódio.

Ratko Mladic, o conhecido "carniceiro dos Balcãs", costumava dizer: “Quando vos dou garantias, é como se vos tivessem sido dadas por Deus”. No cerco de Sarajevo, os habitantes o ouviam gritar repetidamente através de um sistema de rádio: “Queimem-lhes o cérebro”. Uma tragédia, a tragédia para a qual aquele senhor idoso e frágil, de nome François Mitterrand, procurou chamar a atenção, e evitá-la, no dia 28 de junho de 1992.

Hoje, em meio ao extremismo político, aos assassinatos em escolas, aos conflitos armados, etc., ações como aquela de Mitterrand fazem falta. De todo o modo, se pelo menos conseguirmos discutir o ódio situando-o num quadro analítico que permita revelar as suas raízes e implicações em cada contexto, possivelmente estaremos contribuindo para superar a superficialidade dos lugares-comuns que marcam os discursos a seu respeito, assim como abrindo caminho para a construção de uma cultura da não violência.

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