A agressão a uma criança autista: o oásis da educação inclusiva

Ameaçar a criança e expulsar da sala porque está a ter dificuldades inerentes à sua condição apenas mostra que realmente a educação inclusiva foi colocada no papel, mas apenas isso.

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Paulo Pimenta

Uma edição recente de A Prova dos Factos da RTP analisou o caso de uma alegada agressão a uma criança autista por uma professora da Casa Pia. Apesar de fotos, relatórios médicos e testemunhas de colegas de sala, o inquérito foi arquivado, como grande parte dos casos de violência contra pessoas neurodivergentes ou com deficiência são.

A alegada agressão foi por a criança, autista e com défice de atenção e hiperactividade, ter dificuldade em ficar na cadeira quieta. Poupo detalhes da agressão, mas quero focar no facto de, em 2022 e com leis de educação inclusiva, esta escola não ter claramente informação ou adaptações razoáveis para esta criança.

O Autismo e a Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção (PHDA) estão intimamente ligados e ocorrem muito em conjunto — aliás, eu, como a criança mencionada, tenho ambos. Ambos não são doenças, mas são condições de neurodesenvolvimento, ou seja, um processamento neurológico diferente.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, cerca de 2% da população mundial é autista e por volta de 5% tem PHDA, o que significa que podemos ter por volta de 700 mil portugueses com um dos dois. Um dos pontos mais comuns, que podem tornar difícil o "estar quieto em sala de aula", são as estereotipias e a hiperactividade. Isto significa que sentimos necessidade de fazer movimentos repetitivos para gerir o stress e regular o nosso próprio corpo, e a hiperactividade pode fazer com que estar quieto seja doloroso, como um "motor" interno a mexer-nos. Algo que parece que a sociedade ainda não conseguiu compreender é que isto não são “comportamentos”, são reacções neurológicas.

Uma criança autista que tenha dificuldade de se sentar quieta em sala de aula não está a ser “difícil”, assim como uma criança com epilepsia não o seria ao ter uma crise ou uma criança em cadeira de rodas não o seria por não subir umas escadas. O meu corpo tem reacções diferentes aos estímulos sensoriais, e se estiver muito tempo sem fazer estereotipias e regular o meu corpo, principalmente em salas de aula onde os estímulos são imensos (sons, luzes, movimento, etc.), sinto uma electricidade a passar nos músculos, que causa dor e desconforto, que vai acumulando até sentir na garganta uma pressão, enxaquecas, sensibilidade à luz e, eventualmente, ter uma crise, que pode ser evitada se eu puder mexer o meu corpo e o regular.

Não é algo que, mesmo com mais de 30 anos, eu consiga controlar totalmente, porque não é um comportamento e estudos recentes com autistas adultos mostram isso mesmo. Consigo gerir melhor, compreender quando estou a ficar sobrecarregada, regular melhor o meu corpo, como qualquer adulto que tem uma melhor percepção corporal e emocional do que uma criança. Mas se, nos autistas adultos, não conseguimos controlar uma reacção neurológica, pergunto-me como esperam os professores que uma criança o consiga fazer.

Quando falamos de adaptações razoáveis para autismo e PHDA, parece que ninguém sabe o que fazer para além de obrigar as crianças a “comportarem-se”, e o mesmo acontece em adaptações no emprego. Existem brinquedos de estereotipia, cadeiras para hiperactividade (que permitem movimento), disponibilizar uma sala em separado para a criança fazer uma pausa, entre muitas outras soluções para apoiar. Ameaçar a criança e expulsar da sala porque está a ter dificuldades inerentes à sua condição apenas mostra que realmente a educação inclusiva foi colocada no papel, mas apenas isso. A falta de financiamento para implementações práticas, a ausência das pessoas autistas no planeamento e implementação da educação inclusiva (quando está, de todo, a ser implementada) e a exclusão de pessoas com deficiência de receber adaptações razoáveis que, como muitos adultos autistas, não recebem os 60% de incapacidade no atestado multiúsos mostram uma constante tentativa de “parecer bem” no papel para a União Europeia, mas uma ausência de vontade real para a mudança.

A frustração de profissionais de saúde, educação, instituições, entre outros, e a violência contra pessoas autistas pelos seus “comportamentos” não são caso isolado e único. Sofremos muito mais violência, de todos os tipos, do que pessoas não-autistas. Quando queremos denunciar, mesmo com provas, somos descredibilizados, ou o sistema é tão inacessível, assim como as escolas, que não o conseguimos fazer.

Um estudo recente mostrou que pessoas autistas estavam expostas ao dobro da violência física do que pessoas não-autistas, mas têm muito mais dificuldade em denunciar e encontrar apoio acessível. A European Council of Autistic People está de momento a fazer um estudo sobre experiências de violência em autistas adultos para compreender a prevalência da violência e dificuldades em denunciar. Foi aprovado também no Orçamento de Estado de 2023 um estudo sobre violência contra pessoas com deficiência em Portugal. Esperemos que, ao contrário de muitos outros estudos prometidos, não fique em "águas de bacalhau" porque a informação e dados são essenciais para mostrarmos a importância da inclusão e aumento de acessibilidade de programas de saúde pública, principalmente na área de apoio a vítimas de violência e saúde mental.

O oásis da educação inclusiva, assim como qualquer ponto de políticas sociais associado a deficiência, inclusive a desinstitucionalização e assistência pessoal, continuam a receber tostões das associações e organizações que se espremem para os manter em movimento, enquanto o financiamento europeu para a vida independente parece que nos ilude.

Enquanto não tivermos dados concretos sobre a violência perpetuada contra pessoas autistas, especialmente nos serviços públicos, realmente Portugal é inclusivo e fica bonito para quem nos vê de fora. E nós, pessoas autistas, somos quase todos “casos isolados”.

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