Dar a volta às palavras

É claro que a plasticidade da linguagem é salutar e recomenda-se. E, por mais que protestemos, a linguagem acaba por ter uma vida própria e incontrolável.

Há um par de dias, um grande amigo de uma geração anterior à minha franziu o cenho perante a estranheza que é o facto de algumas palavras estarem a ser torcidas pela malta da minha idade: até há bem pouco tempo, dizer que uma coisa era ridícula, absurda ou uma estupidez era exclusivamente sinal de desaprovação. Hoje, alguns de nós começam a utilizar esses adjectivos pejorativos para fazer deles elogios.

Não é que o meu forte seja a etimologia, muito menos a linguística, mas como sou um idealista nem sempre suficientemente convicto, tenho uma teoria: o advento dos novos sentidos oferecidos às palavras de outrora deve-se ao assassinato dos termos exageradamente utilizados.

Eis um exemplo: toda a gente se deixou contagiar pelos media e pela publicidade, onde tudo desde há uns cinco anos até aqui tem sido “incrível”. Tudo incrível, desde um par de sapatos à capacidade vocal de uma cantora jovem, da lata de atum à vertigem de surfar uma onda gigante. Um adjectivo esmifrado até ao tutano, para mal de todos os dicionários de português alguma vez impressos neste país.

E depois então, um pouco à força dos remos da internet, acabamos por dar por nós à procura de outros termos que, esses sim, façam jus ao que queremos dizer. Começou há muitos anos com o “brutal”, adjectivo que queria dizer, noutros tempos, “próprio de bruto, violento, selvagem”, de acordo com um dicionário que tenho cá por casa, claramente já desactualizado. A transformação do “brutal” para um tom de “extraordinário” ou “inigualável” deveu-se ao assassinato do “espectacular”, termo tão datado que até já fica mal dizê-lo em público. E, nos dias que correm, nem o “brutal” presta. O brutal passou a soar fraquinho, e precisamos de adjectivos com outra força. É por isso que vamos buscar outros adjectivos que podiam soar a mau para os exacerbarmos ao ponto da inversão – numa espécie de “aquilo foi tão fora do alcance que seria uma estupidez imaginar que era possível”.

É claro que a plasticidade da linguagem é salutar e recomenda-se. De certo modo, nem há grande coisa que possamos fazer a esse respeito: ou a utilizamos, tentando dar-lhe significados que já tem, ou recusamos este ou aquele termo, numa espécie de rebeldia totó – e estou à vontade com o insulto, porque eu próprio a cometo: recuso-me a dizer que uma façanha foi “incrível”, prefiro optar pelo “ridículo” ou “absurdo”. E, por mais que protestemos, a linguagem acaba por ter uma vida própria e incontrolável. Não há nada a fazer, a não ser usá-la com o sentido que nos apetecer, mas que se vá variando o vocabulário à bruta para que não se assassine nenhum outro adjectivo nos próximos anos.

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