Cinemateca Brasileira: tragédia anunciada, memória renunciada

Deixar queimar é deixar morrer o que não é só meu ou teu, mas da civilização humana que, ao longo dos séculos, cultivou dons. Ao atingirmos a materialidade, deixando queimar museus e cinematecas, estamos atingindo também a imaterialidade, o singular que nos faz colectivo no mundo.

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Reuters/CARLA CARNIEL

Lina Bo Bardi escreveu: “O passado não volta. Importantes são a continuidade e o perfeito conhecimento de sua história. A defesa do património cultural não pode ter fracturas. As fracturas culturais, a indiferença e o esquecimento são próprios das classes médias e altas - o povo não esquece - é o único capaz de constituir-se numa continuidade histórica sem fracturas.”

O ano era 2012, estava na casa de um casal de amigos na cidade de Burnham on Crounch, interior do distrito de Essex, Inglaterra. À noite, o casal tinha o hábito de, antes de servir a ceia, colocar um disco de vinil a tocar. Entre Mozart, Schubert, Neil Armstrong e Frank Sinatra ouvi, inesperadamente, uma canção na minha língua materna saindo da vitrola. Uma voz doce, mas de uma potência incomparável. Na época, eu tinha 15 anos e nunca tinha ouvido a voz do meu, no meu, próprio país. Conheci a força delicada de Clara Nunes numa noite gélida inglesa e fui a ela apresentado por um casal estrangeiro, que não tinha apenas aquele, senão todos os seus discos, e também os de Caetano, Gil, Gal e Milton. Naquele dia tive uma aula, em inglês, do tamanho da MPB, da melodiosa canção dos trópicos que aquecia aquele lar de Inverno. Fui arrebatado por um sentimento misto de vergonha e orgulho. Orgulho, por ser conterrâneo daquela voz. Vergonha, porque precisei estar a milhares de quilómetros do meu país para me reencontrar com ele, com o melhor dele. A partir daquela noite, comecei a conhecer melhor e valorizar a nossa música e não necessariamente porque agora tinha um “selo de qualidade” britânico, mas pelo incómodo do desconhecimento da minha própria terra, cultura, história e, no fim, de mim mesmo.

A cultura é um bem imaterial que depende da memória colectiva. Ainda que possamos materializar cultura em quadros, filmes, esculturas, galerias e museus, ela permanece totalmente dependente de algo imaterial, que é a memória. Todo o património artístico e cultural é histórico e, por isso, todo o património material depende da imaterialidade para continuar vivo. O valor de uma obra de arte, de um filme ou de uma música depende dos que estão hoje dispostos a preservá-los para si e para os que virão. Um povo deve-se observar no seu acervo material e, para isso, precisa de cultivar a cultura da imaterialidade, da educação para o cuidado. Deixar queimar é deixar morrer o que não é só meu ou teu, mas da civilização humana que, ao longo dos séculos, cultivou dons. Ao atingirmos a materialidade, deixando queimar museus e cinematecas, estamos atingindo também a imaterialidade, o singular que nos faz colectivo no mundo.

Será que não reconhecemos o que somos por causa da indiferença com o que temos ou, por não reconhecermos o que somos, somos indiferentes ao que temos? As políticas omissas com a cultura são omissas com a polis, com a cidade, com o cidadão e, por isso, não são políticas genuínas. É notório que as principais estratégias de Governos autocráticos sejam anticientíficas e anticulturais. A Ciência só importa se chancelar os delírios do autocrata e a Arte pouco importa, quando lembrada, colocada num puxadinho de uma secretaria em respeito à moral e aos costumes.

A irreverência da arte e o rigor metodológico da Ciência irritam os autocratas tresloucados. Para eles, a irreverência deve ser punida, silenciada, criminalizada e esquecida, valendo somente se direccionada contra o Estado Democrático de Direito. Essa não só é valorizada, mas também financiada pelas autocracias. Nada que não seja dócil e disciplinado presta, pois para governos tais, artistas são revolucionários que filmam um mundo impossível, pintam uma realidade que não existe e cantam uma crítica que instiga o aparato moralizante da censura. O rigor também lhes é útil, mas não o científico, gostam do rigor da ordem, do massacre, das queimadas e do extermínio. Tudo o que é muito científico é pouco fiel à divindade encarnada no autocrata. Aos cientistas, o fogo do inferno do apagão de dados e de investimentos. Aos artistas, o fogo das chamas do esquecimento.

Ironia trágica que no mesmo dia da reabertura do Museu da Língua Portuguesa, após seis anos de reforma, a Cinemateca tenha sido tomada pelas chamas do descaso. O conjunto da obra é péssimo para um povo que ignora a sua arte, cultura e história. Minadas estão as suas chances de um dia emancipar-se do anonimato. Após o fim da Segunda Guerra, os alemães optaram por preservar as estruturas dos campos de concentração como símbolos do que um colectivo desinformado é capaz de fazer. Talvez seja essa uma boa saída para as tragédias anunciadas do Brasil. Ao invés de revitalizar tudo o que restou, deixar bem à vista de todos, os destroços e as cinzas. Reservar uma ala de museu queimado pela negligência e expor um acervo de filmes destroçados pelo descaso. Danos à cultura são irreversíveis, porque causam uma fractura indelével no constructo da memória colectiva. Não foi apenas um punhado de coisas velhas queimando na Cinemateca, mas incinerada a história do nosso audiovisual. Cremamos a nós mesmos, quando esquecemos do património cultural do Brasil. Tragédias anunciadas desembocam em memórias renunciadas.

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