A economia política do mito

Não sabemos o que vai acontecer nas próximas semanas, mas sabemos uma coisa: que o governo perdeu toda a legitimidade. E, no entanto, o problema não está exactamente aqui, mas no facto de este, efectivamente, se poder dar ao luxo de abdicar da sua legitimidade. E esse cálculo político, António Costa sabe-o certamente.

Ao contrário da Festa do Avante, onde vozes aguerridas e histéricas vociferavam contra a indecência moral do Partido Comunista Português, o escrutínio em torno da final da Liga dos Campeões, que decorreu sábado no Porto, foi bastante mais generoso. Lembro-me também (e não foi assim há tanto tempo) de episódios onde velhinhas ou jovens eram admoestados com toda a autoridade por agentes da polícia por estarem a infringir o seu “dever cívico de recolhimento”. E ainda esta semana ficamos a saber a longa lista de regras e normas que são esperadas para os acessos e para a permanência nas praias. De forma geral, a maioria da população respondeu com uma considerável dose de paciência e responsabilidade às exigências e regras do confinamento. Devo lembrar que há pouco mais de um mês nem um simples café podia ser consumido na rua ou ao postigo, que o contacto com familiares e amigos teve de ser reduzido ao mínimo e que todo este esforço foi feito à custa de um equilíbrio físico, psicológico e social, para muitos, de difícil gestão.

Ao ver os adeptos ingleses em grandes ajuntamentos, a beber cerveja em copos de plástico na rua (cuja venda julgava estar proibida), sem máscaras e sem qualquer distanciamento social, tudo isto com uma presença policial reduzida ao mínimo, não fica apenas o desconforto perante a evidência do óbvio (isto é, que juntar milhares de adeptos furibundos não poderia ser senão uma tarefa impossível de gerir), mas fica a presença inaudita de uma dualidade de critérios que dificilmente é compreensível. Não sabemos o que vai acontecer nas próximas semanas, se vamos ter ou não um aumento do número de casos de covid-19. Mas sabemos uma coisa: que o governo perdeu toda a legitimidade. E, no entanto, o problema não está exactamente aqui, mas no facto de este, efectivamente, se poder dar ao luxo de abdicar da sua legitimidade. E esse cálculo político, António Costa sabe-o certamente.

Ora, se, por um lado, a razão, dizem, é o lugar por excelência da política (e desse discurso racional temos sido tão bombardeados ao longo da gestão desta crise, no enunciar explicativo, didáctico e professoral das medidas), por outro lado, o lugar onde a política encontra a economia é o lugar onde essa lógica racional se parece desfazer de forma tão abrupta quanto absurda (algo, aliás, bem evidente ao longo da gestão da pandemia). E isso é revelador, certamente, das contradições que a política detém na sua relação (de servidão) com a economia, mas sobretudo do estatuto que esta última guarda para si, precisamente como aquele lugar que se pode subtrair a qualquer princípio de racionalidade. Isto não quer dizer que à economia falte uma racionalidade própria, bem pelo contrário, mas que esta se apresenta no discurso político sempre para além do princípio da razão, para além do princípio da justificação.

É justamente essa dimensão mítica e mística da economia (que certamente será lida pelos historiadores do futuro com o mesmo sarcasmo com que os historiadores actuais falam da Santíssima Trindade ou da transubstanciação do pão e do vinho em carne e sangue de Cristo) que faz com que esta pertença ao político apenas na condição de o transcender, de permanecer nele como injustificável, de permanecer nele como crença. E essa é a glória do dispositivo político da democracia liberal: ela funda todo um imenso espaço político da razão para que a economia (que é, na verdade, o seu fundamento) possa permanecer fora da razão.

Reconhecer isto significa compreender igualmente a operação originária que define a função da política na democracia liberal, isto é: a transubstanciação (ou melhor, em termos mais seculares, a legitimação) permanente dos interesses do capital em interesses da sociedade no seu todo (uma correlação que só, justamente, ao nível do mito e enquanto mito pode ser verificada). A economia, seguindo uma máxima conhecida, não é senão a continuação da religião por outros meios.

Tal como o espectáculo, como escrevia Guy Debord, “nada mais diz senão que ‘o que aparece é bom, o que é bom aparece'” (esse “sol que não tem poente, no império da passividade moderna"), também a economia faz da sua presença a razão única da sua própria existência. A economia não se justifica, nem se compreende: ela é aquilo que é e nada mais. Aquilo que vemos, por isso, no rosto desses ingleses, que alegremente vivem como o primeiro os últimos dos dias, não é senão o rosto glorioso (e sem máscara) da Economia, que não cessa de nos lembrar aquilo que já Cristo tinha dito uma vez a Santa Catarina de Siena: “Tu és aquela que não é, eu sou aquele que é.”

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